Por Charles A. Perrone [1]
Na década de 1960, a Bossa Nova brasileira teve presença excepcional na América do Norte. Quando a indústria discográfica percebeu que as canções nesse dolce stil nuovo cantadas em português não iam satisfazer os objetivos de venda, começaram a contratar letristas que pudessem fazer versões em inglês ou, em alguns casos, passaram a pedir que compositores brasileiros apresentassem “traduções” de suas músicas vocais. Os resultados foram bastante variados, tanto estética quanto comercialmente. No presente trabalho, baseando-me em métodos críticos de analistas como Peter Low e Gene Lees, considero os principais casos de Bossa Nova in English e faço uma demonstração prática de técnicas músico-tradutórias com uma composição clássica de João Gilberto.
Nos últimos 57 anos, a Bossa Nova tem sido um dos gêneros mais executados e populares do mundo, portanto merece análise extensiva e interdisciplinar. O evento mais famoso na história da música popular brasileira na América do Norte foi “An evening of Bossa Nova” no Carnegie Hall de Nova York, em 21 de novembro de 1962.
Capa do LP Bossa Nova at Carnegie Hall, vários artistas (Sergio Mendes e Sexteto, Carmem Costa, Bola Sete,
José Paulo, Sergio Ricardo, Quarteto de Oscar Castro Neves, Luiz Bonfá, Agostinho dos Santos, João Gilberto,
Milton Banana, Carlos Lyra, Ana Lucia, Caetano Zamma, Normando, Chico Feitosa), Audio Fidelity, 1962.
Mais de vinte músicos brasileiros destacados tocaram; foram complementados por alguns norte-americanos especiais (isto é, que conheciam o estilo estrangeiro o suficiente para poderem tocar publicamente). A Bossa Nova já havia chegado aos Estados Unidos como música instrumental, aspecto que certamente se fortaleceu naquele evento divisor das águas. Mas a partir do Carnegie Hall, a música vocal – a canção – dominaria a solidificação do fenômeno no país. Vários músicos brasileiros ficaram em Nova York, trabalhando principalmente ao lado de talentos locais. No Brasil havia Bossa Nova, com pronúncia nativa, e no mundo anglófono haveria “Bah-sah No-Vuh”, articulado com sotaque gringo.
Em 2004, um projeto especial na Inglaterra intitulado Nova Jobimapresentou novas versões em língua inglesa de 13 composições históricas do supremo cancionista Antônio Carlos Jobim. No encarte a cantora Lyn Acton e o seu versionista explicam que o objetivo das novas letras em inglês era retificar (ou seja, corrigir) o que percebiam como falta de fidelidade das versões estabelecidas nos anos 1960. Tal ênfase na correção da tradução das letras foca a atenção no significado, a ponto de parecer que elas foram concebidas como textos discursivos, quando a reformulação das palavras para cantar obviamente tem de seguir indicadores musicais, sobretudo contornos melódicos.
O processo de providenciar palavras para cantar numa segunda língua pode seguir três abordagens básicas:
1) fazer uma versão livre, do tipo English lyric by, simplesmente colocando palavras na música, sem pretensão alguma de reproduzir nada do original;
2) criar uma rough version, ou versão aproximada, com alguma conexão com o original; ou
3) buscar chegar a uma tradução parecida com a transferência literária, idealmente capturando conteúdo e efeitos.
Critérios para julgar as versões, seja qual for a abordagem preferida, podem ser encontrados nos escritos de quem pratica a arte e dos acadêmicos que trabalham com a prática relativamente nova da teoria da tradução da música vocal. Podemos avaliar aspectos técnicos, estéticos e ideológicos, incluindo questões relacionadas à indústria discográfica, produtos vendáveis e direitos, royalties.
Há vários tipos de letra refeita ou traduzida. Evidentemente, o tipo mais importante de canção noutro idioma é aquele para performance e/ou gravação. Contudo, há outros. O especialista em chanson française Peter Low considera sete variedades, desde cribs, algo como uma ficha explicativa para quem canta (uma “explicação” do assunto da letra) até encartes de discos e programas impressos, sumários para MCs e legendas de vídeo. Esses são casos de tradução linguística em si, em que o tradutor não tem de se guiar por rima, prosódia, dinâmica, harmonia ou melodia. O que mais importa, afirma Low, “é uma versão cantável desenhada para casar com a música e para ser executada com ela, de modo que não se ouça a língua-fonte” (Low, 2003, p.104). Os standards que Low sugere para orientar a feitura de versões numa segunda língua servem também como parâmetros para julgar sua eficácia. Em estudo intitulado “The Pentathlon Principle”, o crítico-tradutor expõe um skopos prático, uma abordagem baseada em metas, reconhecendo a necessidade de equilibrar critérios na macroestratégia geral e nas decisões em nível micro.Usando uma metáfora de evento atlético olímpico para frisar pesos relativos e flexibilidade, suas cinco competições em jogo são: cantabilidade, sentido, naturalidade, ritmo e rima. Adesão cega a um só fator pode afetar a avaliação das cinco categorias de uma tradução lírico-musical, a qual deve buscar acima de tudo equilíbrio. Há na Bossa Nova USA muitas instâncias que ilustram efeitos, resultados sonoros e julgamentos.
Em um capítulo sobre a canção como texto, o notável sociólogo da música popular inglês Simon Frith inclui alguns exemplos de outras línguas. Embora não comente as versões em si, suas observações sobre composição e performance permitem extrapolarmos:
O desafio de colocar palavras em música é que dois princípios de organização do som têm de ser forçados a se conciliar. O ritmo da fala, a forma em que um padrão de ênfase é determinado pela sintaxe, não é necessariamente apropriado para o ritmo da música, que segue suas próprias regras estruturais. De maneira parecida, o som de uma palavra semanticamente necessária (para dar sentido a uma declaração) pode não ser o som da palavra desejável para a música, que torne a locução musical atrativa. (Frith, 1996, p.173)
Isto é: a canção relaciona-se mais à expressão do que às ideias em si, e a lógica músico-linguística deve se impor sobre a significação.
No que se refere à Bossa Nova in English, a figura principal foi Gene Lees (1928-2010). Como cidadão do Canadá bilíngue que se mudou para os Estados Unidos, Lees era sensível a plataformas translinguísticas e à experiência da migração. Estudou música – composição, piano, violão, voz – assim como jornalismo, e chegou a ser redator-chefe de DownBeat, a revista mais importante de jazz. Escreveu muitos encartes excelentes. Com tantas qualificações, Lees foi contratado pelo Departamento de Estado norte-americano para acompanhar, em 1962, um tour histórico de jazzistas pelo Brasil.
Capa do LP Jazz Meets the Bossa Nova, The Paul Winter Sextet, Columbia, 1962.
Durante a estada no Rio de Janeiro Lees disse a Tom Jobim: “if the bossa nova tunes were translated properly to retain the sensitivity and lyricism of the Portuguese lyrics, bossa nova might have a healthy influence on U.S. music” [Se as canções da bossa nova fossem traduzidas apropriadamente para reter a sensibilidade e o lirismo das letras em português, a bossa nova poderia ter uma influência saudável na música dos Estados Unidos] (Lees, 1963, p.23). Mais tarde, Lees informou os leitores americanos sobre a bossa nova: “As letras são tão importantes quanto as melodias. De muito bom gosto e poéticas, mergulham mais profundamente no coração humano do que a canção americana tende a fazer. Têm significado genuíno como literatura light” (encarte do Paul Winter Sextet). Note-se que, anos depois, Lees não se surpreendeu quando as criações da Bossa Nova chegaram a ser tópicos de teses em departamentos de literatura, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos. Por fim, Lees tornou-se versionista e redigiu um guia para escrever letras e versões, no qual constam vários exemplos brasileiros. Para situar sua especialização com justeza, ele afirma que criar letra em cima de música é mais difícil que escrever poesia, por causa das exigências musicais.Lees considera traços como a rima, a distribuição de vogais e consoantes e a cantabilidade, e a principal responsabilidade é “making it fit”, fazer tudo encaixar corretamente, a começar pela articulação coordenada de palavra e melodia. A meta fundamental (e razoável) das versões é capturar um sentimento governante: “compreender o espírito essencial da canção e reconstruí-lo tão fielmente quanto possível na segunda língua” (Lees, 1998, p.222). Pode-se conceber que a essência da Bossa Nova está refletida no título do segundo LP de João Gilberto, O amor o sorriso e a flor. Assim, o mote do versionista bossa-novista seria recriar o estilo amável e relaxado, o zeitgeist de “romance de praia” e lazer, aquilo que o professor inglês David Treece chamou de “ecologia do íntimo” e de “racionalidade ecológica” (Ver Treece, 2013). Treece também escreveu sobre as canções de Jobim e Vinícius em inglês, comparando letras originais, versões dos anos 1960 e suas próprias versões, anotadas e justificadas admiravelmente.
Dois títulos absolutamente centrais no repertório nacional e no songbook internacional da Bossa Nova foram as clássicas composições metamusicais “Desafinado” (“Slightly Out of Tune”/“Off-Key”) e “Samba de uma nota só” (“One Note Samba”). Outras que marcaram época foram “Garota de Ipanema” (“The Girl from Ipanema”) e “Corcovado” (“Quiet Nights of Quiet Stars”). As versões dessas quatro – e outras de Jon Hendricks, Gene Lees, Norman Gimbel, Ray Gilbert e do próprio Tom Jobim – compõem um corpo assaz significativo para avaliar qualidade e qualidades, para o bem e para o mal. Encontram-se muitas coisas apressadas e outras belas, cuidadosas.
As versões feitas nos Estados Unidos são cruciais para entender a Bossa Nova como fenômeno mundial porque, como asseverou o maestro Júlio Medaglia, as versões em outros países tendem a ser elaboradas a partir do inglês e não do original em português. No Brasil, a canção que “mudou tudo” foi a gravação de 1958 de João Gilberto de “Chega de Saudade” (Tom Jobim e Vinícius de Moraes), que teria uma versão estadunidense bastante inexpressiva. A tomada aproximada de Jon Hendricks, “No More Blues”, é tematicamente similar num sentido bem amplo (com semantemas de separação e nostalgia), mas não tem nenhum dos efeitos sonoros do original (especialmente aliteração), muito menos a graça. Dada a falta de articulação entre palavras e melodia, ganharia poucos pontos na escala de Peter Low. Ora, “No More Blues” entrou no manual do músico profissional, The Real Book, ajudando Jobim a ficar em segundo lugar em termos de número de títulos na antologia. Só perde para Duke Ellington.
Uma música brasileira que tomou conta das rádios norte-americanas em 1962 foi a versão instrumental de “Desafinado” pelo violonista Charlie Byrd e pelo saxman Stan Getz. Enquanto seu LP Jazz Samba chamou a atenção para “the exciting modern Brazilian folk music” (sic) [a emocionante música folclórica brasileira moderna], infelizmente o bem-intencionado Byrd transcreveu a melodia e a harmonia de “Desafinado” com erros, e a faixa (em relação ao original) simplesmente tinha falhas, coisa que colegas do Brasil perceberam. O novo texto que Hendricks escreveu para cantar em inglês foi feito, segundo ele próprio, em apenas 10 minutos; ele criou metáforas musicais um tanto aleatórias, omitindo totalmente o ângulo metamusical fundamental do original. Ficou “idiomaticamente americano” na opinião de Gene Lees, que escreveu:
a letra em inglês tinha pouco a ver com a letra original em português, a qual é um pedido engraçado de um moço para sua menina, que tem ouvidos privilegiados, para que aceite sua expressão amorosa fora do tom, desafinada. Porém tem mais: a moça é perfeccionista e conformista, e o menino, que não pode entrar em contato com um mundo dúbio, está indagando por que ele deve ser considerado indigno do amor dela. Debaixo do humor há uma tristeza: a canção é uma súplica aguda em nome de todos os não conformistas gentis … Eis uma canção profunda, sutil, da qual a música popular americana não se aproxima. (Lees, 1998, p.235)
Lees, como se vê, advogava em nome da Bossa Nova.
Uma primeira versão do outro manifesto, “Samba de uma nota só”, reduziu o aspecto metamusical semelhante a algo totalmente dentro de paradigmas românticos insossos. No Carnegie Hall, Jobim cantou tanto em português quanto seu próprio texto em inglês, “protestando contra a versão já publicada”, segundo Lees (1963, p.23). Reza a lenda que Jobim andava por Manhattan com rascunhos da letra no bolso e aproveitava qualquer oportunidade para indagar nativos bem informados sobre a eficácia da linguagem. Jobim persistiu e, no fim das contas, conseguiu que aceitassem sua excelente versão. Ainda há as acadêmicas: a minha e a de Treece. As gravações de “One Note Samba” e “Desafinado” podem ser ouvidas como sensações excepcionais no contexto de uma moda cheia de falácias. Uns 2 anos após a explosão da Bossa nos Estados Unidos, o crítico Robert Farris Thompson se queixou de “uma das piores pestes de comercialismo jamais infligidas numa arte popular” (Thompson, 1964, p.43). Além da invenção de uma dança, roupas temáticas, campanhas de publicidade e outras aberrações, houve muitas gravações de gosto bem questionável.
“Desafinado” e “One Note Samba” integraram um LP muitas vezes considerado o ápice da música mal dirigida: Eydie Gormé, Blame it on the Bossa Nova.
Capa do LP Blame it on the Bossa Nova, de Eydie Gormé, Columbia, 1963.
A canção “culpa” a Bossa Nova, que uma menina dançava tão bem que distraiu o namorado da cantora lírica. Essa faixa-título teve muito sucesso em disco de 45 rotações. Como produto pop foi bem produzido, e nem tinha intenção de ser Bossa Nova verdadeira, mas acabou contribuindo com força para a circulação de conceitos errados que o público tinha sobre o estilo. Como em todas as faixas do disco do que chamaram “exciting new jazz-samba rhythm from Brazil” [emocionante novo ritmo jazz-samba do Brasil], a bateria da primeira faixa, “One Note Samba”, é algo evidentemente diferente da Bossa; é outra coisa. A vocalista, por sua vez, canta a peça exuberantemente, como uma novidade meio circense, brincando com as palavras de Jobim numa coda, de tal forma que elas perdem parte de sua mensagem musical. De modo similar, o arranjo e a execução de “Desafinado” favorecem o lado de entretenimento de acordo com a fraca versão de Hendricks, e não a dinâmica calma, sem alarde, característica da Bossa Nova Brasil. Considerando-se o título desse álbum, Blame it on the Bossa Nova, e possíveis repercussões das interpretações vocais, cabe citar uma avaliação de Robert Farris Thompson com alvo mais amplo: “os cantores e as cantoras da Bossa Nova, em sua maioria, não comunicaram ao público ianque o significado original brasileiro da frase que nomeia sua música especial e as nuanças da frase que formam, por seu turno, sua estética” (Thompson, 1965, p.81).
Houve, digamos, um contraponto às gravações dolorosas, a saber: as sessões que reuniram figuras brasileiras e americanas chaves, como Stan Getz e João Gilberto. O primeiro LP dos dois juntos tinha o début de Gene Lees como versionista da Bossa Nova, “Corcovado” vertida como “Quiet Nights of Quiet Stars”. A história da versão revela detalhes pouco lisonjeiros sobre as operações das editoras musicais. Na primeira edição publicada, os chefes fizeram mudanças no texto de Lees, sobretudo incluindo rimas que não havia no original, e até mudaram o título para “Quiet Nights and Quiet Stars”, modificação, nas palavras de Lees, “em detrimento tanto das imagens quanto da cantabilidade da canção … exemplo de falta de sensibilidade sonora e de ignorância da mecânica do canto” (Lees, 1981, p.23).
A faixa-monumento desse LP era, obviamente, “The Girl from Ipanema” bilíngue, sobre a qual circula muito folclore. Lees se queixou de que a versão de Norman Gimbel reduziu as cinco notas originais da primeira linha a três, o que “completely destroys the swing” [destrói totalmente o suingue] (Lees, 1998, p.236). Arthur Nestrovski concordou plenamente, num blogue sobre Bossa Nova em Londres. Pior ainda: na gravação, houve um erro gramatical terrível na vocalização. Astrud Gilberto cantou “looks at he” em vez de “looks at me” or “looks at him”. Mas a combinação dessa gafe transformada em desvio bonitinho na segunda parte do arranjo com a alteração da primeira linha no fim das contas não interferiu, lembrando o objetivo fundamental de uma versão para Lees, com a captação do espírito praieiro desiludido romântico de “Garota de Ipanema”.
Um disco excelente para observar contrastes entre faixas seria The Astrud Gilberto Album com Jobim, o qual tinha quatro títulos em português e sete em inglês, como “Dreamer” (“Vivo Sonhando”), letra de Lees, e “How Insensitive” (“Insensatez”), letra de Gimbel. Outro caso sintomático é um álbum pré-Brazil ‘66 do pianista imigrante Sérgio Mendes, o qual tem várias faixas com a vocalista Wanda de Sah, inclusive a versão definitiva de “One Note Samba” e o afro-samba “Berimbau” (Baden Powell e Vinícius de Morais). Essa distinção musical foi observada inteligentemente por Robert Farris Thompson; ele até traduziu parte da letra num artigo para comentar a política cultural. A faixa-chefe é “So Nice”, letra de Gimbel para “Summer Samba” (“Samba de Verão”, de Marcos e Paulo Sérgio Valle), exímio exemplo de uma versão que ignora o original e simplesmente oferece um texto inteiramente novo. O LP Brasil ‘65 de Sérgio Mendes também inclui duas faixas instrumentais de composições de Jobim e Vinícius com crédito também para um tal Ray Gilbert, versionista de letra, apesar da total ausência de vocal. Esse sujeito fez inimigos com uma série de acordos meio sinistros, como Ruy Castro documentou em sua conceituada monografia.
Bossa Nova: The Story of the Brazilian Music that Seduced the World, de Ruy Castro (A Capella, 2000).
Jobim obteve os melhores resultados quando controlava e escrevia suas próprias letras em inglês – “One Note Samba”, “Triste”, “Wave” e sua maior façanha, contemplada mais adiante, após uma consideração de outro caso exemplar.
Dizem que a primeira canção Bossa Nova não era samba, mas um baião inovador daquele que criou o estilo, João Gilberto, o qual teria composto a modesta peça no sertão baiano olhando lavadeiras carregando suas trouxas na cabeça ao voltarem das pedras do rio. Isso uns 2 anos antes da gravação das primeiras faixas Bossa Nova no Rio, em 1958. A canção em questão, “Bim bom” – uma das pouquíssimas que João compôs –, apareceu em seu LP de 1959. Foi tão importante que deu título a um tributo 55 anos mais tarde.
Capa do CD Bim Bom: The Complete João Gilberto Songbook, de Ithamara Koorax & Juarez Moreira, Jazz Therapy, vol. 2, 2009.
A composição consiste em um refrão de vocable, sílaba essencialmente assêmica, mais um adjetivo de uma sílaba, e um verso simples com rimas internas e finais:
Bim bom bim bim bim bom, bim bom bim bim bim bom bim bom / É só isso o meu baião e não tem mais nada não. O meu coração pediu assim, só…
As contagens silábicas são das mais típicas do verso folclórico em português, de sete e dez, e há uma coda de uma nota, só. Esse exemplo é fácil de trabalhar para efeitos de “tradução” porque é curto, tem traços bem definidos, e já existem várias versões para comparar. Uma tradução de música, se calhar, pode tentar reproduzir o significado e manter rima, acentos e contornos melódicos. Pode até haver alguma transferência cultural. Astrud Gilberto cantou “Bim Bom” com orquestra no seu LP Look to the Rainbow (1965)e num número de TV americana: That’s the way I work my song, just the words that go bing-bong. Sorry but my heart has made it so [Assim trabalho minha canção, apenas as palavras que dizem bim-bom. Sinto muito mas meu coração o fez assim, então]. Há uma rima, mas também uma desculpa sem explicação, e não se menciona o gênero musical. Enfim, adequado, mas limitado o esforço. Tal abordagem se repete no próximo cover de Sérgio Mendes & Brasil ’66, Equinox (1967):
If the words sound slightly wrong, that’s the way they wrote the song. Safe to say that that’s the way it goes, so. [Se as palavras soarem levemente erradas, é assim que compuseram a canção. Seguro dizer que assim vai, então.]
Uma versão meio que embotada, parecendo implicar que há algo de errado – talvez extrapolado do vocábulo só do original –, e o termo da música é ainda genérico, “song”, canção. Acrescentar so em inglês exemplifica um procedimento chamado homofônico, usando uma palavra na língua-alvo que soa mais ou menos como a palavra fonte. Mais recentemente, em vista de quão repetitiva se apresenta a composição de João Gilberto, o letrista Paul Sonnenberg fez três letras novas, e assim abriu espaço para reproduzir significados e rimas (https://paulsonnenberg.wordpress.com/about/bim-bom/):
It’s a very simple song, that’s all there is it’s not too long. But my heart tells me this is how it goes, so… [É uma canção bem simples, é só isso, não é tão longa. Mas meu coração me diz que é assim que vai, então...]
That’s the song there’s nothing more, though you may think it’s just a bore. My heart insists that this is how it goes, so… [Essa é a canção, não há mais, embora você pense que é só tédio. Meu coração insiste que é assim que vai, então...]
That’s all there is, yes that’s the song, I played it through it wasn’t long. It’s really just as simple as it seems, so [É só isso que há, sim essa é a canção. Eu a toquei toda, não foi longa. É tão simples quanto parece, então]
Ainda dependendo da palavra “song”, algumas das opções podem parecer meio autodepreciativas. Por sua parte, “it seems” é uma boa opção fonética por “assim” nesse esforço tripartido. Ao todo, alguma coisa ainda pode estar faltando para o paladar exigente.
Ora, como exercício, vamos considerar algumas variantes temáticas sem medo do gênero original e ficando atentos à rima interna e à noção de sonoridade. Um coro homofônico poderia ser bean bone (feijão osso), mas isso é menos importante que atentar para o fonema recorrente, o ditongo nasal /ãw/, o que eu verti com -ound. Convenientemente, rima com sound. Construí quatro possibilidades (Versions, © Charles A. Perrone):
1) Hear the beat upon the ground, it’s the hippest trip around / Oh my heart does pound to seek a sign, so [Ouça a batida no chão, é o trip mais bacana por aí / O meu coração bate a buscar um sinal, então]
2) It’s so mine, it’s my bye-owhn, it’s the best and it’s my sound; At my core a tune resounds so clean, oh; [é tão meu, é meu baião; é o melhor e é meu som; no meu íntimo uma toada ressoa tão limpa, ô;]
3) It’s my beat and it’s my tone, it’s all mine it’s my baión; Yes my heart has grown it seems, so…; [é minha batida e é meu tom, é todo meu é meu baião; sim parece que o meu coração tem crescido, então...]
4) S-O-U-N-D bye-owhn, it’s the all of what I’ve found / In my soul a note rebounds so keen, oh… bean bone bean bean bean bone bean bone. [S-O-M baião é o tudo do que encontrei / Na minha alma uma nota ecoa tão afinada, ô ... bim bom bim bim bim bom.]
Tentei adicionar o semantema de possessão, um pouco de percussão verbal, alguns equivalentes vocálicos e o gênero em si, o baião, que pode ser anglicizado, como no número 3, dado o fato de que as caixas de percussão de alguns órgãos vendidos na América do Norte nos anos 1960 tinham realmente uma posição chamada baión. De qualquer modo, verifica-se que apesar da simplicidade da canção, podemos embelezar, realçar e expandir um pouco na medida em que “traduzimos” a maior parte do conteúdo num contexto novo.
Tom Jobim traduziu seu próprio material em seu maior sucesso como cancionista: “Águas de março” (1972) e “Waters of March” (1973). O som e o texto intricados têm fascinado vocalistas, músicos e críticos ao redor do mundo por décadas. Uma importante contribuição recente é “A construção de ‘Águas de março’”, de Walter Garcia.
Essa composição de Jobim é genial, com traços entrelaçados que complicam a experiência: repetição insistente de frases melódicas meio cortadas, linhas cromáticas descendentes no baixo, acordes invertidos, ciclo harmônico sem cadência perfeita etc. Tudo é essencialmente igual em “Waters of March”; transforma-se um pouquinho a melodia para acomodar preferências textuais. A canção foi, segundo revelação do compositor, inspirada no poema “O caçador de esmeraldas”, de Olavo Bilac. A verdade de que a composição se regeu pelo texto vê-se também no fato de que Jobim, numa época em que encartes com letra não eram comuns (especialmente em discos de jazz), dedicou a capa interna à letra no lançamento em Nova York (MCA Records). A letra em inglês tem uma estrutura externa visivelmente diferente daquela do original, mas mantém um estado anímico com afinidades muito íntimas, tudo orientado por uma consciência da natureza e elementos afetivos. Enfim, essa canção continua a impressionar. Em várias enquetes das melhores canções de todos os tempos no Brasil, “Águas de março” ganhou, e o cancionista estelar Chico Buarque de Holanda chamou essa criação de “o samba mais bonito do mundo” (ver Nestrovski, 2004). O importante crítico de jazz Leonard Feather escolheu a canção de Jobim como uma das melhores do século XX. A gravação definitiva foi feita com Elis Regina em Los Angeles, e Elis e Tom figura entre os melhores LPs de todos os tempos. Pode-se provar mais ainda a profundidade de “Águas de março” ao notar que há, ao redor do mundo, artigos acadêmicos, capítulos e até mesmo teses dedicados a ela. E a tradução é sempre um assunto contemplado.
Analitica: revista online di Studi Musicali, vol. 3, n.2, 2006, com artigo de Enrico Bianchi sobre “Águas de Março”, de Antônio Carlos Jobim.
REFERÊNCIAS
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FREEMAN, Peter. Complexity, Simplicity and Poetic Invention in Antônio Carlos Jobim’s “Águas de março” (Waters of March). In: CROWDY, Denis (Org.) Popular Music: Commemoration, Commodification and Communication. Melbourne: IASPM Australia New Zealand, 2004. p.54-64.
FRITH, Simon. Performing Rites: on the value of popular music.Cambridge, MA: Harvard University Press, 1996.
GARCIA, Walter. A construção de “Águas de março”. In: BACCHINI, Luca (Org.) Maestro soberano: ensaios sobre Antonio Carlos Jobim. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2017. p.105-141.
LEES, Gene. Um abraço no Tom. In: _______. Singers and the Song II. New York: Oxford University Press, 1998. p.217-251.
LOW, Peter A. The Pentathlon Approach to Translating Songs. In: GORLEE, Dinda L. (Org.) Song and Significance: Virtues and Vices of Vocal Translation. Amsterdam/New York: Rodopi, 2005.
MEDAGLIA, Júlio. Balanço da bossa nova. In: CAMPOS, Augusto de et al. Balanço da bossa: antologia crítica da moderna música popular brasileira. São Paulo: Perspectiva, 1968. p.55-112.
NESTROVSKI, Arthur. O samba mais bonito do mundo. In: MAMMÌ, Lorenzo; NESTROVSKI, Arthur; TATIT, Luiz. Três canções de Tom Jobim. São Paulo: Cosac Naify, 2004. p.31-51.
PERRONE, Charles A. Masters of Contemporary Brazilian Song: MPB 1965-1985. Austin: University of Texas Press, 1989.
THOMPSON, Robert Farris. Bossa Nova from the Source. Saturday Review, p.42-43, July 11, 1964.
TREECE, David. Brazilian Jive: From Samba to Bossa and Rap. London: Reaktion, 2013.
[1] Professor Emérito, Universidade da Flórida
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