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As traduções infantis em Libras

O uso da literatura no processo de aquisição sinalar de crianças surdas


Por Michelle Schlemper

 

Iniciamos este artigo narrando um pouco das experiências que nos levaram a questionar a falta de acesso à literatura infantil por parte das crianças surdas em fase de escolarização. Há alguns anos, numa cidadezinha do interior, eu estudava Pedagogia e ministrava aulas para uma turma da primeira fase do ensino fundamental. Nessa ocasião, fui convidada a fazer um curso de Língua Brasileira de Sinais (Libras) na cidade vizinha. Aceitar esse convite despertou em mim o interesse pela comunidade e cultura surdas, que a partir de então passei a amar e estudar.

Já naquela época, eu atuava com contação de histórias infantis, dentro e fora da sala de aula. E assim como Coelho[1], percebia a influência do conto de histórias na aquisição de novos saberes e desenvolvimento da linguagem infantil. Não obstante, com relação às crianças surdas, a “história” é outra. Cerca de 95% destas são proveniente de lares ouvintes, nos quais pais e familiares não conhecem e não usam a Libras em seu cotidiano. Por meio do contato com alunos surdos, inseridos em classes de ouvintes da segunda fase do ensino fundamental e com os pais destes, soubemos que os mesmos não possuíam acesso à literatura infantil em sua língua natural. Preocupados com o desenvolvimento de seus filhos, estes pais estavam começando a aprender Libras, mas preferiam que seus filhos aprendessem a leitura labial, fazendo uso da Libras em poucas situações. Tais atitudes, de acordo com Novogrodsky[2], acabam por limitar a exposição da língua de sinais à criança surda, impossibilitando-a de adquirir naturalmente uma língua, como acontece com as crianças ouvintes que estão expostas a uma língua falada desde o nascimento. Esta limitação imposta às crianças surdas acaba por influenciar seu processo de ensino-aprendizagem, pois as mesmas chegam às escolas sem dominar uma língua que lhes permita raciocinar com a mesma complexidade das demais crianças. O que faz com que sua concepção de mundo seja diferenciada da maioria ouvinte (NOGUEIRA apud MACHADO, 2008).

Para Abramovich[3] “o primeiro contato da criança com um texto é feito oralmente, através da voz da mãe, do pai ou dos avós contando contos de fada, trechos da Bíblia, histórias inventadas”. Contudo, por não partilharem a mesma língua de suas famílias e da sociedade em geral, as crianças surdas filhas de pais ouvintes acabam por ser privadas do acesso ao conto de histórias infantis dentro de suas casas e no ambiente escolar.


A transmissão de saberes e culturas

Para abordar a relação entre o acesso a literatura em Libras e a aquisição sinalar das crianças, faz-se necessário abordar, primeiramente, o tema do conto de histórias infantis e sua relação com o desenvolvimento da criança, numa relação interdependente com o desenvolvimento do pensamento para formação de um sujeito crítico.

Vários povos possuem a narração como forma de guardar e preservar sua cultura, tradição e história. Por meio da tradição oral, do ato de narrar, cada geração transmite à seguinte aquilo que considera importante. Tais histórias inseridas no tempo passaram a ter suas versões escritas e traduzidas, e a partir de do século XV, com a invenção da imprensa, amplamente divulgadas.

No entanto, as traduções para uma linguagem infantil começaram a surgir somente no século XVII, com Charles Perrault. Até então as crianças eram tratadas como pequenos adultos, sendo seu acesso à literatura, o mesmo dos adultos. Como escritor, Perrault organizou uma coletânea de contos, adaptados para a linguagem infantil a partir de histórias conhecidas e narradas tanto pela nobreza como pela plebe. Traduziu e adaptou os contos selecionados, a fim de que as crianças os pudessem entender e apreciar, narrando-os primeiramente aos seus próprios filhos. Estes contos ficaram sendo conhecidos como Contos da mamãe gansa ou Contos da carochinha.

Após Perrault, outros escritores e tradutores também deram atenção especial às crianças, iniciando o processo de popularização da literatura infantil. Entre os mais conhecidos, podemos citar os Irmãos Grimm, Hans C. Andersen, Joseph Jacobs e Jeanne-Marie L. Beaumont. No Brasil, como precursor da literatura infantil, destacou-se Monteiro Lobato. Lobato percebia tanto a importância da tradução de literatura infantil, que em seu tempo era precária no Brasil, que trouxe personagens clássicos como Peter Pan para as aventuras vividas em seu Sítio do Pica-Pau Amarelo.

Autores como Abramovich, Coelho e Hunt[4] apontam para a importância da literatura na compreensão de mundo por parte das crianças, pois o “ouvinte[5]” se relaciona direta ou indiretamente com os personagens da história, procurando ideias e maneiras de resolver os conflitos vividos pelos personagens, compartilhando de seus sentimentos de medo, coragem, alegria, culpa e complacência. O acesso às histórias possibilita à criança a apropriação e a reflexão sobre situações como as vividas pelos personagens. Abramovich afirma que “é através duma história que se podem descobrir outros lugares, outros tempos, outros jeitos de agir e de ser, outra ética, outra ótica.”

Assim, a cada história é transmitida, consciente ou inconscientemente, a cultura inserida no conto, dando à criança azo de conhecer e refletir sobre as semelhanças e diferenças existentes entre a sua realidade de vida e a de outros que “cruzam” pelo seu caminho. Respeito, amor, perdão, serviço, coragem, bondade, lealdade, fidelidade, honestidade são valores apresentados por meio das histórias infantis. Ao ter acesso ao conto, a criança tem a oportunidade de abstrair conceitos e valores sociais. Nesse processo, sua capacidade crítica e caráter vão se formando, a fim de dar à criança a possibilidade de viver bem em sociedade.

A literatura infantil contribui muito para a aquisição de valores culturais. Sejam as histórias provenientes de contos bíblicos, da mitologia grega, de contos de fada ou de mistério, quando traduzidas para a linguagem infantil, oferecem às crianças a possibilidade de, em seu tempo, reconhecer os diferentes tipos de crenças e ter a possibilidade de aprender a respeitar aqueles que pensam diferente de si. Em um mundo globalizado, multicultural e pluricultural, faz-se necessário reconhecer e respeitar as diferenças. E neste bambolear de histórias provenientes de diferentes tempos, lugares e culturas, a criança, fazendo uso dos óculos da sociedade na qual está inserida, tem a possibilidade de avaliar a pertinência ou não de tais práticas.


O desenvolvimento cognitivo e linguístico

Louis Paswels apud Abramovich escreve: “Quando uma criança escuta, a história que se lhe conta penetra nela simplesmente, como história. Mas existe uma orelha detrás da orelha que conserva a significação do conto e o revela muito mais tarde.” Cada signo e cada palavra, cada ato de linguagem será transferido de seus ouvidos e de seus olhos para a sua mente.

Luria e Yudovik falam sobre a importância da linguagem na formação dos processos mentais complexos. E o que são as histórias, senão palavras? Palavras faladas, escritas, cantadas, desenhadas. Palavras de carinho, aconchego, conselho, exortação. Palavras de dúvida e de resposta, sentimento e emoção. Tanto faz se tais palavras são sinalizadas ou não.

A partir dessas considerações, pode-se supor que a história narrada/traduzida para a linguagem da criança ficará na mente dela como fala[6] interior, que não se dissipa totalmente, mas subordina-se ao pensamento. Se a criança internaliza a fala, então ela a submete a transformações internas, alterando-a nesse processo de submissão do pensamento. Assim, quando as histórias chamam a atenção da criança, elas não acabam ao final do conto, mas permanecem na mente da criança, sendo trabalhadas, transformadas e vivenciadas por quem as ouve/vê. E nesse percurso de submissão da palavra ao pensamento e vice-versa, os processos mentais complexos são ativados, possibilitando o desenvolvimento de linguagem com mais fluidez.

No contato tido com a história, novos vocábulos são apresentados e aprendidos. Ao ouvir/ver histórias, a criança é exposta a novos signos, vocábulos, palavras, sinais, não soltos, mas inseridas em contextos diversos. O acesso a novas histórias e novos vocábulos, de forma natural e espontânea, possibilita que a criança se arrisque a criar e recriar suas próprias histórias, ampliando seu vocabulário e desenvolvendo a linguagem.

O conto de histórias no ambiente escolar possibilita ao educador desenvolver uma série de potencialidades nos educandos. Por meio do conto, pode-se trabalhar a interdisciplinaridade de forma atrativa. Uma vez que um mesmo conto permite abordar vários temas, como o estudo de conjuntos, contagem crescente e decrescente, estudo dos animais, plantas, alimentos, natureza, além do enriquecimento do vocabulário, ou então, porque não dizer “sinalário”[7].

A interdisciplinaridade, promovida pelo conto de histórias, quando aproveitada de maneira lúdica, traz a possibilidade de, a partir de um único conto, aprender sobre vários assuntos e em diferentes momentos. A partir do momento em que as crianças começam a gostar de histórias, passam a ser um bom público. Quando isso acontece, de acordo com Coelho, há a possibilidade de desabrochar o gosto pelos livros, pela língua escrita, uma contribuição para a formação de futuros leitores. E esse gosto pelo conto narrado, ouvido, assistido, visualizado, lido, esse amor e paixão pela literatura nos remetem a uma frase de Cecilia Meireles: “Ah! Tu, livro despretensioso, que, na sombra de uma prateleira, uma criança livremente descobriu, pelo qual se encantou, e, sem extravagâncias, esqueceu as horas, [a TV, as brincadeiras, o lanche, o smartfone, o tablet, o videogame] [8]”.





Literatura e Libras

Também o povo surdo[9] tem, através do conto de histórias, transmitido de geração em geração sua cultura, seus valores e suas crenças por meio da tradição oral/sinalizada. O encargo da transmissão de novos saberes, que desde a antiguidade cabe ao adulto transmitir à criança, também é cumprido dentro das comunidades surdas através da tradição oral, que neste caso configura-se como fala sinalizada. Assim a comunidade surda tem buscado produzir, divulgar e disponibilizar literatura em Língua de Sinais com objetivo de apresentar aos surdos e ouvintes “suas peculiaridades culturais, suas vivências, suas aspirações, desejos, sonhos e sentimentos[10]

Mourão[11] distingue três tipos de produções dentro da literatura surda: a criação, a adaptação e a tradução. As criações são representadas pelas obras inéditas criadas por sujeitos surdos. Nestas a cultura e a experiência surda são latentes. “Encaixam-se textos originais que surgem e são produzidos a partir de um movimento de histórias, de ideias que circulam na comunidade surda”. No Brasil ainda é escasso o material literário infantil criado pelos sujeitos surdos e disponibilizado ao público, entre os quais podemos citar Tibi e Joca, o Feijãozinho Surdo, Casal Feliz, entre outros.




Por sua vez, as adaptações ou traduções culturais, acontecem quando há alterações, mudanças claras relativas às questões culturais e linguísticas, durante a tradução para a Libras de um conto já existente em outra língua e cultura. Nestas, alguns dos personagens antes ouvintes passam a ser surdos, ou então, a interagir com personagens surdos. Nas adaptações, se expressa a busca da identidade surda e do empoderamento do povo surdo por meio do uso da língua de sinais. Histórias como Cinderela Surda, Rapunzel Surda, A cigarra surda e as formigas e O Patinho Surdo mostram que “os autores desses livros, conhecendo os clássicos da literatura mundial e seu valor, realizam adaptação para cultura surda, de forma que o discurso traga representações sobre os surdos”.




Tanto as criações quanto as traduções culturais para Libras são exemplos que procuram registrar e retratar as dificuldades encontradas pelo sujeito surdo num mundo de ouvintes e mostrar a importância de encontrar semelhantes que ouvem pelos olhos e falam com as mãos. Tais materiais têm entre seus objetivos, além de promover às crianças surdas o lazer e o acesso ao mundo literário, instigar o fortalecimento da identidade surda e divulgar aos leitores os valores e a cultura do povo surdo. Estas obras são marcadas com o uso da Libras como único meio viável de comunicação entre surdos e entre surdos e ouvintes. Seus personagens alcançam seus sonhos, suas liberdades, sua cidadania ao terem acesso ao uso da língua de sinais no encontro e contato com outros que lhes são semelhantes, que lhes compreendem e respeitam em suas singularidades e diferenças.

A tradução por sua vez, acontece ao se disponibilizar, em Libras, um conto, poesia, anedota ou outro gênero literário escrito em outra língua. Segundo Mourão, “tais materiais contribuem para o conhecimento e divulgação do acervo literário de diferentes tempos e espaços, já que são traduzidos para a língua utilizada pela comunidade surda”. Editoras como Arara Azul e Sociedade Bíblica do Brasil, entre outras, têm investido na produção e tradução de Literatura em Libras. Clássicos infantis como João e Maria, Peter Pan, Alice para Crianças, Aventuras da Bíblia, O Soldadinho de Chumbo, O Gato de Botas, entre outros estão entre os materiais literários já traduzidos para Libras.


 



No entanto, a produção de literatura surda brasileira, ainda é ínfima. E, além disso, como mencionado anteriormente, a maioria das crianças surdas é proveniente de lares ouvintes. Nestes, a Libras é muitas vezes desconhecida e comumente rejeitada, uma vez que é vista como um desvio da “normalidade” da criança. Grande parte dessas crianças não tem contato eficaz com pares surdos ou com a comunidade surda. Tais atitudes impossibilitam que o desenvolvimento da linguagem da criança surda aconteça como em qualquer outra criança: no contato, na troca de informações, na interação linguística, no acesso à literatura infantil, ao ouvir/ver uma história narrada por sua mãe, pai, avós e professores.

Indagamos então como proporcionar a essas crianças surdas o mesmo acesso que as ouvintes à literatura infantil no ambiente escolar, uma vez que a maioria dos educadores da rede regular de ensino não é bilíngue? Por mais comprometidos e esforçados que sejam, a maioria dos educadores desconhecedores da Libras recebem crianças surdas em suas classes em nome do processo de “inclusão”. E aqui se inserem as traduções de literatura infantil e seu uso literário/pedagógico no ambiente escolar.


Tradução e Línguas de Sinais

Para Munday[12] o termo tradução carrega significados diversos, tais como: o produto final (texto traduzido) ou o processo (ato de traduzir). Esse processo envolve o caminho pelo qual o profissional tradutor percorre, ao alterar ou transformar um texto (originalmente produzido) conhecido como texto fonte, produto de uma linguagem verbal[13], também originária, que é chamada de língua fonte, para uma linguagem verbal diferente, que seria a língua alvo. A partir desse processo um novo texto surge, o produto final, o texto alvo.

Como citado anteriormente, na literatura infantil e infanto-juvenil já há traduções para Libras. Entre os materiais traduzidos podemos encontrar clássicos infantis como Alice para Crianças, João e Maria, Peter Pan, A ilha do Tesouro, Uma aventura do Saci-Pererê, entre outros publicados pela editora Arara Azul[14]. Editoras como LSB vídeo e Sociedade Bíblica do Brasil (SBB) também investiram na tradução literária infantil para Libras. Além das editoras, muito material de tradução literária infantil tem sido disponibilizado atualmente pela internet. Espalhados pela rede ou em sites como https://librando.paginas.ufsc.br/ podem-se encontrar diversos materiais traduzidos para Libras a fim de disseminar conhecimento, cultura e a língua de sinais.

Na área de Estudos da Tradução, a maioria das traduções em Libras, nas quais as traduções literárias estão inseridas, se denominam traduções orais ou traduções sinalizadas (sight translation). As traduções para os sistemas de escrita de sinais ainda são ínfimas. Nas traduções sinalizadas, diferente do que ocorre nas interpretações, o profissional tradutor tem acesso ao texto antecipadamente, seja este escrito, em vídeo ou áudio, possui tempo para estudar a língua fonte e o contexto em que o texto foi produzido. Tempo para definir ou conhecer o público alvo do mesmo, para elaborar seu processo tradutório e verificar as questões culturais inseridas no texto fonte que serão relevantes no texto alvo. As omissões, explicações, criações, adaptações são estudadas e planejadas, como ocorre com a tradução entre textos escritos, ou de textos orais para textos escritos. O diferencial, na tradução oral, se dá pelo fato de que o texto alvo será disponibilizado de forma oral/sinalizada e não escrita, para então ser registrada em suportes midiáticos.

A constatação de que a maioria das traduções para Libras ocorrem entre signos[15] de modalidades diferentes permite inferir que, ao traduzir-se um conto da Língua Portuguesa escrita para Libras, se está fazendo uso de uma tradução que, além de interlingual , é intermodal, uma vez que o português é de modalidade oral auditiva enquanto a Libras é de modalidade gesto-visual, e intersemiótica, pois na maioria das vezes as traduções que envolvem a Libras transitam entre sistemas semióticos diferentes. O caráter intersemiótico das traduções em línguas de sinais podem ser percebidos no uso do sistema de escrita de sinais, o SignWriting[16], de caráter pictórico, visual, iconográfico, com o uso de símbolos que representam a sinalização do sujeito. Já no seu início, este sistema de escrita foi desenvolvido de forma iconográfica a fim de representar movimentos e passos de dança pela Norte Americana Valerie Sutton. Também o registro em suportes midiáticos atribui a tais traduções um caráter intersemiótico.

A própria sociedade contemporânea tem alterado as configurações da tradução. Diante do avanço tecnológico, hoje, não há somente uma forma de registrar um texto: por meio da escrita no papel, papiro, pedra, pergaminho, etc., mas sim diversas formas de registro foram e têm sido criadas, divulgadas e disseminadas na sociedade moderna. Esses registros podem ser textuais, iconográficos, sinalizados, verbais, icnográficos, etc. Independentemente de serem considerados registros verbais ou não, têm passado por processos tradutórios contínuos. A tradução nestes casos pode-se dar por meio do texto escrito, ou dublagem, ou legenda, ou tradução sinalizada para surdos, ou tradução vocalizada para ouvintes. Envolvendo o texto escrito ou não, mesmo assim, sempre tradução.

Estas são as razões que levam a crer que a Libras, assim como as demais línguas de sinais, quando traduzida de ou para outra língua, está imbricada num meandro de traduções interlinguais, intermodais e intersemióticas[17].


Tradução de literatura infantil e Libras

É consenso que toda e qualquer tradução exige que o tradutor estude seu público alvo, a fim de buscar estratégias de tradução que possibilitem uma melhor recepção de seu material. Esta realidade não é diferente da do tradutor de literatura infantil. Este sempre necessita ter em mente qual é o seu público alvo e tal escolha deve ter como base o nível de desenvolvimento linguístico e cognitivo do público. As peculiaridades do público alvo precisam ser consideradas. A tradução para crianças não deve ser a mesma que para adultos letrados ou recém-alfabetizados, da mesma forma que uma tradução para crianças de 4 anos será diferente de uma tradução para crianças de 8 anos e 12 anos, uma vez que as fases linguísticas e os campos de interesse das mesmas diferem na medida em que crescem.

É natural que as traduções infantis, cujos originais não foram criados para um público com características etárias e culturais semelhantes, passem por um processo de adaptação, a fim de que o público alvo possa se envolver, sentir a beleza do texto e compreender a mensagem do mesmo. Se o tradutor de textos para público infantil não observar tais especificidades – uma vez que os contextos culturais do texto de partida e chegada diferem –, o texto de chegada será de difícil percepção e não surtirá o interesse desejado no público alvo. Também interferem na tradução de literatura infantil a imagem que o tradutor tem das crianças, sua concepção do que é ser criança e suas próprias experiências enquanto criança leitora. A tradução de contos infantis em Libras passa pelos mesmos processos de qualquer outra tradução.

Com relação às discussões acerca da tradução de literatura infantil, ainda há muita discussão sobre o que é adaptação, versão, tradução, etc. Para Azenha,[18] a adaptação está sempre presente em maior ou menor grau em qualquer tradução. No entanto, para a literatura surda, o termo adaptação carrega outro significado. Para a literatura surda, entre as traduções produzidas para o público surdo, adaptações são aquelas em que há modificações, alterações latentes no texto traduzido, a fim de se fortalecer a cultura surda. Nesses casos, torna-se perceptível não só a existência de uma adaptação linguística, mas também cultural e social, sendo que marcas próprias das comunidades surdas saltam aos olhos do leitor. Essas são chamadas de traduções culturais.

A adaptação intersemiótica abunda nas traduções de literatura infantil, uma vez que, para se atingir a sensibilidade das crianças, são usadas imagens, fotos, desenhos (coloridos ou não) e pinturas que possibilitam a leitura visual pelos pequenos leitores. “A figura visual traz consigo o potencial de ser aproveitada como recurso para transmitir conhecimento e desenvolver o raciocínio[19]”. Da mesma forma, as traduções de literatura infantil em Libras são ricas em efeitos visuais, imagens, expressões faciais, movimento corporal, ritmo, classificadores, vestimentas, em que diversos tipos de linguagens se cruzam e se imbricam para formar um todo. Tudo isso faz que a criança surda seja atraída para o texto traduzido, que sinta a beleza do texto.

Uma nova tradução de clássicos da literatura infantil para Libras

A literatura infantil para o público surdo atualmente publicada, independentemente da forma de registro e disponibilização, tem como objetivo divulgar a língua de sinais, a cultura surda e o conhecimento ao povo surdo. Em nossa pesquisa, analisamos traduções de clássicos infantis para Libras, entre eles alguns da editora Arara Azul, a fim de verificar se os mesmos poderiam ser usados como mediadores de aquisição sinalar em classes “inclusivas” da rede regular de ensino, nas quais as crianças estavam em fase de escolarização.

O tradutor de literatura infantil está constantemente envolto no processo de tradução intersemiótica, uma vez que, diferente dos demais tradutores, este se preocupa com aspectos gráficos e tipográficos da tradução. Em virtude das especificidades do público alvo, as traduções infantis são recheadas de imagens e, no processo tradutório, o profissional tradutor é motivado também pelas imagens na tradução do texto fonte. “À leitura de imagens pode-se vincular a leitura de histórias[20]”. Para os alunos surdos, o caminho da aprendizagem necessariamente será visual, daí a importância de os tradutores de material literário e didático-pedagógico compreenderem mais sobre o poder constitutivo da imagem.

Em nossa pesquisa, fizemos contato com três alunos surdos que se encaixavam no perfil citado por Novogrodsky, sendo filhos surdos de pais ouvintes que não sinalizam em casa. Isso acarretou às crianças a dificuldade de constituir relações interpessoais e sociais. Suas atitudes demonstravam que possuíam uma percepção de mundo diferenciada das crianças ouvintes da mesma idade.

Juntamente com suas turmas, os alunos surdos tiveram acesso a dois modelos de tradução de literatura infantil. Primeiramente uma tradução já disponibilizada no mercado e aceita pela comunidade surda.  Todavia, como ainda não há diversas versões dos contos clássicos em tradução infantil em Libras (assim como há em Língua Portuguesa) para que se pudessem analisar quais tipos de traduções promovem mais inputs sinalares em crianças em fase de escolarização, propusemos a edição de uma tradução em linguagem infantil em Libras de dois contos de fadas, a fim de concretizar tal análise. Desta forma, seguindo a percepção de Nida[21] de que as traduções infantis devem ser diferentes das traduções para recém-alfabetizados, foram produzidas e editadas duas novas traduções em Libras dos contos Peter Pan e O Gato de Botas a partir das versões em Língua Portuguesa do livro “Grandes Clássicos[22]” da editora Libris, conforme imagem abaixo.




A escolha de tal livro se baseou nos seguintes critérios:

a) Trata-se de uma coleção de contos da literatura infantil mundialmente conhecidos, em um único volume.

b) Sua linguagem escrita e visual foi considerada propícia para crianças em fase de escolarização.

c) O texto em Língua Portuguesa é de fácil assimilação por crianças em processo de alfabetização.

d) As ilustrações são nítidas e apropriadas para serem usadas com crianças inseridas na primeira fase do ensino fundamental, considerando-se a riqueza das cores e o detalhamento das ilustrações.

e) Muitas das histórias contidas no livro já possuem uma versão traduzida para linguagem infanto-juvenil em Libras. Ao terem acesso às mesmas e vindo a gostar da literatura, as crianças poderão buscar outras versões e materiais literários já traduzidos em Libras.

Durante o processo de tradução e edição do texto traduzido, seguiram-se as orientações de Nida sobre as perguntas que um tradutor deve se fazer enquanto trabalha. Uma vez que o público alvo das traduções eram crianças em fase de alfabetização sinalar, foi nas características destas que se pensou durante todo o processo, desde a escolha do livro texto, imagens, edição da tradução, posição do tradutor na tela, facilidade de manuseio do CD, tempo e assim por diante.

Uma nova tradução dos contos foi realizada por uma profissional, e não pela pesquisadora, a fim de evitar vícios e interferências na pesquisa. Na edição das traduções, foram retirados os textos em Língua Portuguesa, deixando-se apenas as imagens das cenas da história, que compartilhavam o espaço com o tradutor, à medida que o texto era traduzido. Com tal característica, o tradutor divide o espaço da tela com a imagem enquanto o texto em Libras “corre”, à medida que a história é traduzida. Cada tradução se inicia com as páginas do conto sendo “folheadas” automaticamente, enquanto o nome do conto se torna mais nítido, sendo este o único termo em Língua Portuguesa que aparece na tradução.

Após a abertura, o tradutor apresenta o tema da história e convida o leitor a conhecer os personagens principais do conto, para então iniciar a tradução do mesmo, conforme indicam as imagens abaixo, referentes à tradução infantil de Peter Pan.





Para tais traduções, basta clicar na história que a mesma “corre” até o final do conto, podendo desta maneira ser acessada por qualquer criança. As traduções possuem cerca de 10 minutos cada. Como o tradutor divide espaço com a cena do conto, evita-se a poluição visual e se possibilita a leitura das imagens, uma vez que estas devem auxiliar o aluno na compreensão do texto. O tradutor, de corpo inteiro, dividindo o espaço com a imagem, nos remete a um texto em CAIXA ALTA, no qual a criança tem melhor visualização da sinalização, das expressões faciais, movimentos corporais e uso dos classificadores. A disponibilização do texto em Língua Portuguesa é, portanto, proporcionada por meio do acesso ao livro impresso.

As duas turmas assistiram primeiramente a traduções em linguagem infanto-juvenil publicadas pela editora Arara Azul. Num segundo encontro, tiveram acesso à tradução do outro conto em linguagem infantil produzida para esta pesquisa. Por meio da análise das filmagens, pôde ser feita a comparação do feedback sinalar das crianças surdas e ouvintes, a partir de cada tipo detradução, com a finalidade de perceber qual tipo promove mais inputs sinalares nas crianças em fase de escolarização.

Ao observar a quantidade de feedbacks sinalares expressa pelas crianças durante o acesso as  traduções apresentadas, foi possível, verificar que uma tradução baseada em linguagem mais infantil promove mais inputs sinalares em crianças em fase de alfabetização sinalar. Ao se comparar a aquisição sinalar das crianças a partir dos dois momentos tradutórios, por meio das atividades realizadas e entrevistas dialogadas, validou-se que o acesso à tradução infantil em Libras possibilitou maior aquisição sinalar aos alunos surdos e ouvintes.


Considerações finais

Percebemos que ainda há de ser percorrido um longo caminho na busca de estratégias de tradução de literatura infantil em Libras. Mais especificamente, traduções que possam, conforme Azenha, consubstanciar as possibilidades de brincadeiras e o caráter lúdico da vida no texto literário. Que possam promover às crianças surdas desde a mais tenra idade o acesso ao mundo literário em sua língua natural. Dessa maneira, elas poderiam ser pedagogicamente inseridas no contexto escolar, de forma a promover o desenvolvimento sinalar, cultural e cognitivo das crianças surdas, enquanto ludicamente proporcionam momentos de lazer e refúgio.

Artigo baseado na pesquisa de mestrado da autora, sob o título: Traduções infantis para libras: o conto como mediador de aquisição sinalar. UFSC. 2016.

Michelle Schlemper é assistente em Administração do Departamento de Libras (LSB) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestre em Estudos da Tradução (UFSC). Pós Graduanda em Linguagens e Educação EaD (UFSC); Graduada em Letras Libras/Licenciatura (UFSC) e graduada em Pedagogia pelo Centro Universitário Leonardo da Vinci. Tem experiência na área de Educação. Desenvolve pesquisas na área de Literatura infantil e Literatura Surda para crianças.

 

[1] COELHO, Betty. Contar histórias: Uma Arte sem Idade. Série Educação. 10ª edição. 2ª impressão. São Paulo, SP: Editora Ática. 2000. 78p.

[2] NOVOGRODSKY, Rama; FISH, Sarah; HOFFMEISTER, Robert. The acquisition of synonyms in American Sign Language (ASL): Toward a further understanding of the components of ASL vocabulary knowledge. Sign Language Studies. Volume 14, Number 2, Winter 2014, pp. 225-249.  DOI: 10.1353sls.2014.0003.

[3] ABRAMOVICH, Fanny. Literatura infantil: gostosuras e bobices. 5ª. Ed. 2ª imp. São Paulo: Scipione, 1997.

[4] HUNT, Peter. Crítica, teoria e literatura infantil. Tradução Cid Knipel. Ed. rev. São Paulo: Editora Cosac Naify, 2015. Disponível em: http://lelivros.today/book/baixar-livro-critica-teoria-e-literatura-infantil-peter-hunt-em-pdf-epub-e-mobi-ou-ler-online/. Acesso em: 27 jul. 2016.

[5] A palavra ouvinte foi colocada entre aspas, pois neste refere-se ao público ou plateia que tem acesso à narração, não importa se o mesmo é ouvinte ou surdo, mas o acesso que ele tem da literatura em sua língua materna.

[6] Colocou-se a palavra fala em destaque, uma vez que independe se a mesma é uma produção oral ou gestual.

[7] Vocabulário em Língua de Sinais.

[8] Inserção da autora, uma vez que na atualidade, os equipamentos midiáticos e as novas tecnologias é que tem ocupado tanto o tempo de nossas crianças – no original: “Ah! tu, livro despretensioso, que na sombra de uma prateleira, uma criança livremente descobriu, pelo qual se encantou, e sem figuras, sem extravagâncias, esqueceu as horas, os companheiros, a merenda ...”.


[9]
Ver conceito de povo surdo e comunidade surda em QUADROS, Ronice Müller de. O tradutor e intérprete de língua brasileira de sinais e língua portuguesa / Secretaria de Educação Especial; Programa Nacional de Apoio à Educação de Surdos - Brasília: MEC; SEESP, 2007. 2ª ed. 94 p.

[10] FELÍCIO, Márcia Dilma. O Papel da Tradução e Interpretação na Contação de Histórias Pelos Surdos. IN: Estudos da Língua Brasileira de Sinais. Stumpf et all. vol. II. Florianópolis: Insular, 2014. p.187-206

[11] MOURÃO, Claudio Henrique Nunes. Adaptação e tradução em literatura surda: a produção cultural surda em língua de sinais. IX ANPED Sul. Seminário de Pesquisa em Educação da Região Sul, 2012.

[12] MUNDAY, Jeremy. Introducing Translation Studies: Theories and Applications. 2nd ed. London: Routledge, 2008

[13] Entende-se que a linguagem verbal é o meio de comunicação utilizado por meio do uso da escrita ou da fala tanto vocalizada quanto sinalizada.

[14] A Arara Azul, com suas três empresas: Editora Arara Azul, Arara Azul Educacional e Centro Virtual de Cultura Surda, tem por missão o desenvolvimento de ações destinadas à valorização das línguas gestuais, orais e/ou escritas, à promoção das culturas surda e ouvinte e à aceitação das diversidades humanas. Http://editora-arara-azul.com.br/site/home.

[15] Signo linguístico – Para saber mais veja Saussure. 1969, p. 80

[16] https://escritadesinais.wordpress.com/tag/signwriting/

[17] Para saber mais ver Schlemper, 2016.

[18] AZENHA Jr., João. A tradução para a criança e para o jovem: a prática como base da reflexão e da relação profissional. In: Pandaemonium Germanicum. Revista de Estudos Germânicos. São Paulo, Humanitas, v.9, p.367-392, 2005.

[19]LEBEDEFF, Tatiana Bolívar et al. Quem conta um conto aumenta vários pontos: uma discussão sobre a importância e a arte do contar histórias para o desenvolvimento de crianças surdas. Ponto de Vista: revista de educação e processos inclusivos, n. 6/7, p. 97-106, 2005.

[20] LEBEDEFF, Tatiana Bolívar et al. Quem conta um conto aumenta vários pontos: uma discussão sobre a importância e a arte do contar histórias para o desenvolvimento de crianças surdas. Ponto de Vista: revista de educação e processos inclusivos, n. 6/7, p. 97-106, 2005.

[21] NIDA, Eugene Albert. “Principles of correspondence”. IN: VENUTI, Lawrence (ed.). The Translation Studies Reader. 2nd edition. London and New York: Routledge, 2004. pp.126-140.

[22] RODRIGUES, Tereza. Grandes Clássicos. Tradução Faidra Winky. 1ed. Curitiba, PR: Libris Editora, 2014.

 

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