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A TRADUÇÃO LITERÁRIA ENTRE CRIAÇÃO, EDIÇÃO E METADISCURSO

Conversa entre Álvaro Faleiros, Gilles Abes, Maurício Santana Dias, Rafael Copetti, Roberto Zular e Simone Homem de Mello

Edição: Denise Soares e Simone Homem de Mello



Por ocasião da apresentação da Coleção Transtextos e de outros lançamentos da Rafael Copetti Editor, dia 2 de setembro de 2016, no Anexo da Casa Guilherme de Almeida, tradutores, professores universitários e editores conversaram sobre a tradução literária no processo de criação, no tratamento editorial e na reflexão em âmbito acadêmico.

 

Simone Homem de Mello: Gostaríamos de apresentar aqui o projeto da Coleção Transtextos, editada pela Rafael Copetti Editor, e a publicação mais recente dessa coleção. Mas não só isso. Reunimos aqui algumas pessoas da área para falar sobre iniciativas editoriais centradas na tradução literária e nos estudos da tradução. Se há uma coleção dentro de uma editora voltada somente para os estudos da tradução, certamente existe um espaço e um público para isso. Então convidamos o editor Rafael Copetti, que é pós-doutor em Estudos da Tradução pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); Gilles Abes, professor da área de francês e da Pós-Graduação em Estudos da Tradução da UFSC, e também organizador do lançamento mais recente da Coleção Transtextos, intitulado Tradução Literária: Veredas e Desafios; Maurício Santana Dias, tradutor e professor da área de italiano da Universidade de São Paulo (USP), que não só contribuiu para essa coletânea como autor, mas também está lançando um livro hoje, como tradutor: o Giovanni Episcopo, de Gabriele D’Annunzio; Álvaro Faleiros, tradutor e professor da área de francês da USP, que também contribuiu para o livro, e Roberto Zular, da mesma área acadêmica dessa universidade. 
Quanto ao livro Tradução Literária: Veredas e Desafios, trata-se de uma publicação de ensaios acadêmicos que estão estritamente ligados à prática da tradução como base da teorização. O livro é resultado de um colóquio que ocorreu no ano passado, em Florianópolis, e o Gilles poderá falar mais desse ponto. Embora especializado, esse livro pode ser interessante para qualquer leitor atento à tradução. Ele reúne reflexões sobre textos traduzidos de diversas línguas: grego antigo, árabe, espanhol, italiano, francês, inglês... E aborda temas que, embora diversos, também dialogam entre si. Nessa contiguidade de pensamentos e âmbitos diferentes dos estudos da tradução, também se geram correlações entre os textos. Os temas variam desde aspectos históricos, como a transmissão de uma obra via tradução por diversas línguas, questões de ambiguidade tradutória, tradução e ritmo, a interação do autor com o tradutor ou entre cotradutores. Passo, agora, a palavra para o editor Rafael Copetti, que também vai falar de outros lançamentos.

Rafael Copetti: Nosso projeto editorial é voltado para a publicação de textos acadêmicos de ciências humanas e sociais e literatura – normalmente, literatura traduzida. Nós já estamos com 15 livros (alguns em andamento), e a ideia é chegar à metade de 2017 com 25, contando com os volumes de nossas duas coleções, a Coleção Atemporais (de bolso) e a coleção Transtextos, esta última dedicada à publicação de obras da área de tradução. Dois volumes lançados até hoje na coleção Atemporais são obras italianas traduzidas: O Menininho, de Giovanni Pascoli, e Os Neoplatônicos, novela homoerótica de Luigi Settembrini. Em todos os livros dessa coleção e nos demais livros traduzidos da editora, os tradutores são incentivados a fazer uma pequena nota à tradução, de duas ou três páginas, a seu critério; é o caso do livro do Maurício, Giovanni Episcopo, que tem uma nota excelente. Por que decidimos oferecer esse espaço aos tradutores? Quanto à coleção Transtextos: por que nós pensamos em montar essa coleção, dirigida pela Simone Homem de Mello, pela Andréia Guerini e pelo Walter Costa (os dois últimos da UFSC)? A ideia da nota à tradução surgiu da minha passagem rápida pela Pós-Graduação em Estudos da Tradução, onde comecei a me dar conta da falta de visibilidade do tradutor e desse tipo de reclamação reiterada por parte dos tradutores. Ressalto que a minha formação é em Teoria Literária e não em Tradução; eu traduzo poucas coisas, muito específicas, do futurismo italiano.Depois, veio a dificuldade de encontrar bibliografia adequada que, de modo geral, estava esparsa por milhares de editoras: umas que não existem mais, outras onde não é possível comprar, por serem editoras pequenas, desconhecidas, com sites que não funcionam... Enfim, grande dificuldade. A ideia, no caso da Transtextos, era, portanto, concentrar esses títulos nessa coleção, que foi inaugurada com um livro da Christiane Nord, Análise Textual em Tradução: Bases Teóricas, Métodos e Aplicação Didática, que é teoria funcionalista, praticamente um tratado, de 450 páginas. Já o Tradução Literária: Veredas e Desafios resulta de um evento, é um livro mais leve do que aquele tratado enorme, que é só para estudiosos mesmo. Aliás, estamos buscando mais títulos, não só resultantes de eventos.

Gilles Abes: Vou começar dizendo que, hoje, exatamente dia 2 de setembro, faz um ano que ocorreu o colóquio que deu origem ao Tradução Literária: Veredas e Desafios. O livro resultou dos trabalhos apresentados por diferentes tradutores e profissionais da tradução e professores pesquisadores da área. Mas, na verdade, já vinha do meu projeto de extensão. No momento em que eu estava passando por um concurso na UFSC, percebi que tínhamos muita teoria e pouquíssima prática. A gente estuda Haroldo de Campos, Jacques Derrida, Antoine Berman, e fica muito na discussão... há um trechinho de tradução, no máximo; então, quando vi isso, pensei: “vou propor, num projeto de extensão, um modelo de oficina de tradução em que a gente possa acolher qualquer pessoa que quiser vir traduzir”. Então a minha colega Andrea Cesco teve a ideia de fazer um evento e convidar pessoas que já tinham uma grande experiência em tradução e que pudessem falar do seu trabalho, do ponto de vista de questões concretas, além de problemas práticos e desafios que tiveram de enfrentar durante o processo de tradução de poesia. Nós queríamos atender ao público tanto da graduação quanto da pós-graduação, e incluir diferentes línguas. Tivemos a sorte de contar com tradutores bastante experientes, com trabalhos relativamente diferentes e com problemas muito concretos.

Maurício Santana Dias: Estou bastante contente, porque hoje está saindo a minha tradução do Giovanni Episcopo, de Gabriele D’Annunzio, um D’Annunzio menos conhecido, uma novela de 1891. A tradução resultou justamente de cursos que eu ministro na USP sobre tradução literária. Esses cursos têm uma parte de discussão teórica de alguns textos, geralmente seis textos de vários estudiosos da tradução, e uma segunda parte, que aborda a prática com um texto em domínio público e na qual eu discuto várias questões de tradução e peço que os alunos participem ativamente, trazendo sugestões. Acho importante que a gente tenha editoras preocupadas não só em apresentar o livro, mas também em trazer a reflexão do tradutor sobre a experiência da tradução.

Rafael: O primeiro livro dessa outra coleção foi o Ablativo, de Enrico Testa, que aliás foi lançado aqui na Casa Guilherme de Almeida. Depois que a ideia da nota do tradutor foi lançada, começamos a receber reclamações, porque o livro Ablativo não tinha nota da tradução. [Risos] O Páscoa de Neve, que foi lançado depois na Casa das Rosas, saiu com uma nota da tradução e um posfácio bem bacanas. Acho que para evitar reclamação, também. [Risos]

Maurício: Eu acho bom, porque isso estabelece uma espécie de padrão que leva as pessoas a fazerem essa demanda aos editores.

Simone: Álvaro, você – que também contribuiu para este livro que está sendo lançado hoje e também dirige uma coleção dedicada à literatura traduzida na Dobra Editorial, a Coleção Passagens – não quer falar um pouco sobre a relação dos Estudos da Tradução com a área editorial?

Álvaro Faleiros: É muito boa a ideia de fazer uma conversa com editores que estão pensando a tradução e refletir sobre a questão da visibilidade ou invisibilidade do tradutor. Quando se coloca uma nota do tradutor no final, fica claro que aquilo não é o texto original, mas o texto traduzido com suas questões, implicações, dificuldades. Isso suscita interesse. Parece que esse é um campo que está se abrindo, um modo de ler que está se construindo, outra educação do leitor em relação à leitura de traduções. Basta mostrar para seu leitor que você está diante de uma tradução, das implicações envolvidas nesse tipo de escrita, que isso imediatamente suscita interesse. Acho que é muito bem-vinda essa iniciativa de dar visibilidade para o tradutor, para a tradução, e, quem sabe até, isso vai permitir que, no médio prazo, em termos de legislação, haja avanços, no Brasil, no sentido de reconhecer também o tradutor como autor. Hoje em dia, quem recebe eventuais royalties [direitos sobre o livro], essencialmente, são os próprios autores, quando estão vivos, e o tradutor fica sempre na posição de um prestador de serviço. Essa é uma discussão que tem uma dimensão política e envolve uma política editorial que poderá ter consequências muito interessantes de médio ou longo prazo. Esse tipo de trabalho que você, Rafael, está fazendo ajuda a abrir o campo, a dar visibilidade. Então, parabéns!

Rafael: Obrigado! Nós não poupamos nem os infantis: Alice no País das Maravilhas vem com nota da tradução também. [Risos] Não há quem escape.

Simone: Hoje temos aqui pessoas que ocupam, simultaneamente, alguns dos papéis importantes para a difusão da literatura traduzida: leitores, não só leitores por prazer, mas leitores profissionais, ou seja, editores, professores universitários que leem traduções, os próprios tradutores... Eu gostaria de perguntar aos três professores, inicialmente, como vocês veem a relação existente entre universidade, mercado editorial e criação, ou quais são as dificuldades de interação desses âmbitos.

Gilles: O que eu acho realmente impressionante é que existem muitos professores que traduzem – e textos diferentes!

Rafael: Antes de eu começar a atuar como editor, não tinha noção de que as universidades têm muitas traduções excelentes engavetadas. E é disso que nós estamos atrás.

Gilles: E tem outra coisa.... Existem editoras que acabam procurando tradutores nos programas de pós-graduação em Tradução. A gente recebe, de vez em quando, propostas de editoras menores para traduzir. Não sei se vocês conhecem a Edipro, uma editora no interior de São Paulo que está trabalhando com a possibilidade de dialogar com o tradutor, perguntando quais são os textos interessantes de se traduzir. Depois que o tradutor termina o seu trabalho, a editora manda de volta o texto revisado para ele dar a sua opinião, para ele ver se concorda com as revisões feitas, e às vezes pede notas.

Rafael: Na editora, nós também recebemos muitas sugestões de professores e alunos, sugestões de livros que jamais conheceríamos sem indicação. E a gente também consulta o conselho editorial...

Simone: Acho que, das artes que foram sendo descobertas pelo mercado, a que ficou por último foi a literatura. A tradução, que durante muito tempo nem era reconhecida como arte, ficou ainda mais para trás. Mas isso já vem mudando. E um indício importante é essa iniciativa das traduções comentadas, que têm o mérito de revelar a grande diversidade de tradutores e de reflexões sobre a tradução literária. Isso mudou muito... Agora me ocorre algo que envolve Guilherme de Almeida. Em meados da década de 1940, saiu pela editora Leia o livro As aventuras de Pinocchio, de Carlo Collodi, com ilustrações de Takaoka e “tradução revista por Guilherme de Almeida”. No prefácio, ele elogia a tradução que chegou às suas mãos, dizendo que não mexeu em praticamente nada. Mesmo assim, da edição não consta o nome do tradutor! Isso é uma loucura, não?

Roberto, você também contribuiu para o livro que está sendo lançado hoje, em um artigo escrito com o Álvaro sobre a parceria de vocês como cotradutores de poesia francesa. Você poderia falar mais disso?

Roberto Zular: Bem, eu jamais teria entrado numa empreitada de tradução, porque nunca me julguei capaz de traduzir. Por uma série de razões, mas especialmente por ser um trabalho solitário que me assombrava um pouco. Eu e o Álvaro começamos a trabalhar juntos há 4 anos. E falo com muita alegria que esse trabalho começou aqui na Casa Guilherme de Almeida, numa palestra sobre “Os passos”, de Paul Valéry. O Álvaro propôs fazermos uma nova tradução, e foi aí que tudo começou. Traduzir com alguém possibilita uma troca sobre os pontos cegos dos textos, uma maior clareza da tensão de interpretações em torno dos poemas. Uma vez, eu disse para o Álvaro: “Cara, quanto melhor fica a tradução, menos o nosso trabalho aparece!” [Risos] Daí a coisa foi tomando corpo. A gente já está com o Charmes (Feitiços) inteiro traduzido, e não é pouco! Uma dificuldade gigantesca! O “Esboço de uma serpente” já tinha sido traduzido pelo Augusto [de Campos]. E eu já tinha dado aula e conferência sobre essa tradução. Mas houve um momento em que achei que a gente realmente tinha que encarar a responsabilidade de traduzir um poema que eu julgava extraordinariamente bem traduzido. Aos poucos, fomos trabalhando e encontrando um pouco dessa nossa voz, que é uma voz heterogênea, uma voz múltipla. Mas, no caso da maioria dos poemas de Charmes, acho que mais da metade, as primeiras traduções são nossas. Mesmo assim, nós também tivemos que encarar esse problema da grande literatura, o universo de traduções de “Cemitério Marinho”, por exemplo, de “Esboço de uma Serpente”, de “Fragmentos do Narciso”.

Simone: O Sebastião Uchoa Leite, por exemplo, se esquivou desse problema traduzindo Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, mas incluindo os poemas em tradução do Augusto de Campos... [Risos]

Álvaro: No nosso caso, é um pouco diferente porque não tínhamos ideia de fazer o livro todo, não quando começamos a traduzir.

Roberto: Quando terminamos as nossas duas primeiras traduções, mandamos para o Augusto, que revisou e mandou de volta. Então a gente achou que estava num caminho legal.

Álvaro: Mas fomos nos dando conta de que estávamos construindo outro projeto de tradução, outra relação com aquele texto, que não necessariamente operava dentro dos mesmos parâmetros de tradução de poesia no Brasil. Era outro modo de se relacionar, de tensionar o que está se fazendo com a forma, caso a caso – em que medida vale a pena manter exatamente aquela métrica, ou priorizar um efeito mais de conjunto, uma relação com a rima talvez não tão rigorosa, como se costumou fazer no Brasil, para – por outro lado – dar conta de outras coisas que, às vezes, as traduções de poesia francesa não priorizam, como a sintaxe, o encadeamento de imagens. Essas são coisas muito problemáticas nas traduções de Baudelaire. Quando chegou o momento de retraduzir “Esboço de Serpente”, já tínhamos construído um projeto de tradução. Quanto mais a tradução foi amadurecendo, mais foi possível se desprender da leitura do texto do Valéry do Augusto e construir um projeto próprio, nosso. Outro aspecto muito particular e rico nessa experiência de traduzir conjuntamente que, me parece, vale a pena mencionar é o fato de que, mesmo as grandes traduções feitas pelo Augusto trazem alguns momentos em que o tradutor parece ter esgotado suas possibilidades diante daquele problema. Em qualquer tradução existem momentos mais problemáticos, zonas de sombra, de tensão, nós. Conosco aconteceu o seguinte: às vezes, eu começava a tradução, mandava para o Roberto; às vezes, ele começava e mandava para mim; e o que notamos é que alguns nós muito grandes para um, o outro desatava com muita facilidade. Então, voltando à questão do ponto cego, não somos cegos nos mesmos pontos. [Risos] O trabalho conjunto permitiu que diminuíssemos essas zonas cegas.

Simone: E como vocês formulariam a questão da autoria? Você disse, Zular, que quanto melhor ficava a tradução, menos o tradutor aparecia. Que sensação é essa? Algo que você vê e se pergunta: “fui eu que fiz isso?”, pelo fato de ter se distanciado tanto daquilo, após um trabalho exaustivo, a ponto de não reconhecer mais a sua própria presença? Como se o texto já se tivesse tornado quase independente?

Roberto: O que você está comentando seria o critério de decisão para considerar uma tradução acabada. [Risos] Alguma coisa tinha ultrapassado o limite dos modos como cada um de nós estava operando. A gente tem pensado muito nessa questão do ponto de vista da autoria: manter a multiplicidade e a heterogeneidade que é constitutiva de qualquer discurso. Afinal, você nunca fala sozinho. Mas tivemos que viver isso na marra, sabe? Viver, sem a ilusão de que nós estamos falando sozinhos. E isso é o que o Valéry sempre dizia, que o homem dificilmente está sozinho. Isso foi muito interessante. Mas também há uma espécie da heterogeneidade normativa da compreensão do que é o poético, quando se tenta manter ao máximo essa potência. São muitos parâmetros e fatores atuando ao mesmo tempo: o semântico, o sintático, o afetivo; é o português, o francês; são as outras traduções. Os melhores momentos foram quando a gente realmente conseguiu deixar isso reverberar, sem que nenhum parâmetro se sobrepusesse. E para isso, a heterogeneidade da autoria ajudou muito.

Simone: Agora eu queria perguntar algo para você, Maurício. Acabamos de falar de uma experiência de muitos tradutores ou dois tradutores diante de um autor. Você, muito pelo contrário, é um tradutor diante de um grande número de autores italianos. Nas traduções suas que eu conheço, noto um grande grau de intimidade com esses autores – algo que, provavelmente, também vem da sua função de professor, de investigar mais profundamente diversas poéticas. Eu, por exemplo, acho que jamais conseguiria traduzir tantos autores assim; tenho as minhas obsessões nas quais mergulho. Como é para um tradutor pular de Boccaccio para Pasolini e depois de Pasolini para D’Annunzio, enfim?

Maurício: Uma coisa que me fascina muito é a variedade de formas, porque essa heterogeneidade que está em um texto singular vai estar disseminada pelas várias autorias. Então, nós temos as várias autorias dentro de um mesmo autor, as modulações que acontecem. Um autor nunca é igual a si mesmo e nós temos essa multiplicidade de autorias efetivas, de sujeitos que existiam e fizeram as suas literaturas. Eu gosto muito de transitar por essas várias. Tenho as minhas preferências, é claro, e, ultimamente, tenho me permitido traduzir as coisas que eu quero. Mas me fascinam os vários modos, os registros da prosa antiga para a mais moderna, da poesia formal até a mais informal, os quadrinhos (eu já traduzi quadrinhos, literatura infantil, filosofia, história da arte, arquitetura, psicanálise...). Então, vou compondo uma espécie de enciclopédia de arquivo, em que vou trabalhando com essas formas. Quanto mais eu experimento formas diferentes, mais acho que consigo ir afinando cada uma delas, como se o aporte dessas várias formas acabasse resultando em densidade. Quando eu vou trabalhar com algo específico – com poesia, com um texto antigo, com um texto moderno –, é como se o fato de eu ser um tradutor meio onívoro não desqualificasse aquilo que se espera do especialista de um autor x ou y. A tradução é um manejo de várias linguagens, de várias modalidades textuais, e essas diferentes experiências vão compondo uma espécie de mosaico, o meu arquivo pessoal. É claro que sempre existe aquela angústia da influência, porque às vezes os tradutores deparam com textos que já foram extremamente bem traduzidos.

Simone: Rafael, você – como editor – como vê essa diferença? No seu trabalho editorial, você nota isso na personalidade dos tradutores? Ou seja, faz parte do seu cotidiano esse contato com as múltiplas vozes dos tradutores que você está editando, e não só dos autores?

Rafael: Quando nós recebemos as traduções, a primeira coisa é cotejar o original. No caso dos textos italianos, sou eu que faço isso; nos outros – franceses, por exemplo –, são outras pessoas da editora que dão conta. Fico mais na parte dos autores e não tanto com os tradutores, mas, naturalmente, é perceptível, por exemplo, quando a gente não está no primeiro título do mesmo tradutor. Então, a gente consegue perceber nuances, diferenças que vão se operando com o passar do tempo, inclusive no que se refere a textos ensaísticos.

Simone: E em relação a normas editoriais...

Rafael: Quando encomendamos a tradução, já mandamos o manual de estilo da editora junto, para facilitar o nosso trabalho. Claro, isso depois é reaplicado, mas o tradutor já pode dar uma mãozinha nesse sentido, para o livro ter uma produção mais veloz. Mas são só pequenos detalhes, como versaletes, coisas chatinhas que podemos fazer. Não interferimos na tradução. É óbvio que vai para um revisor de tradução e, eventualmente, ele sugere alguma coisa, mas nada é imposto. O único caso de se impor alguma coisa, seja em tradução, seja em livro de autor nacional, é quando o tradutor ou o autor não responde; se ele não responde, é a nossa sugestão que prevalece, pois também temos prazo a cumprir.

Simone: A gente falou de alguns tipos de heterogeneidade – entre dois tradutores, entre um tradutor e diversos autores, entre o editor e os tradutores... Quanto a você, Gilles, que é franco-brasileiro – bilíngue, portanto –, imagino que a heterogeneidade seja entre as línguas. Quando você traduz do francês para o português, por exemplo, sente que está traduzindo? Ou apenas que está mudando de língua materna, por assim dizer, como Jorge Luis Borges, que – ao conversar em inglês com a avó – não achava que estivesse falando outra língua, mas apenas mudando a fala para um registro de respeito...

Gilles: Eu acho muito difícil conseguir separar os dois idiomas. Essa é a grande dificuldade que eu tenho tido com tradução. Vejo que tem muita influência recíproca. O curioso é que, agora, estou percebendo que o português está sufocando o francês. Por exemplo, se eu olho minhas notas, as que eu faço em livros, percebo que estão mais em português. Antigamente, as duas se misturavam e, antes ainda, elas eram só em francês. Eu sempre falo para os alunos que não tem como separar uma língua da outra, quando se é bilíngue simultâneo. Você sempre tem as duas línguas em algum lugar ali e, em algum momento, uma delas vai interferir.

Simone: Esse é o ponto interessante: para você, não são duas línguas, mas sim uma única língua sua, estendida...

Gilles: Na tradução, isso é muito complicado. Tanto é que decidi, antes de traduzir e continuar realmente a publicar aquilo que eu estava pesquisando no doutorado, fazer outras traduções, realmente como prática. Vou pegando autores diferentes, traduzindo, até em parceria com outras pessoas, para ver se consigo melhorar um pouco e ter um pouco mais de controle disso, porque é bem complicado. Na primeira versão que fiz de uma seleção de cartas de Baudelaire, vi que tinham sobrado coisas muito francesas na tradução.

Simone: Principalmente cartas... porque eu acho que é um gênero bem ligado a uma linguagem que é de todos nós... que ainda escrevemos cartas.

Gilles: E, nesse caso, são cartas do século XIX, com um vocabulário específico. E aparecem vários problemas, como objetos que só existiam na época e desapareceram. Existia, por exemplo, um tipo de objeto que era de marfim, para limpar os dentes e limpar os ouvidos... [Risos] Eu falei para os meus alunos que eles não podiam traduzir aquilo por “palito”, porque quando você fala “palito”, a pessoa projeta mentalmente uma coisa de madeira. A palavra em português é “esgravatador”. [Risos] Mas aquela interferência entre os idiomas é complicada de gerenciar, mesmo. Não existe uma barreira entre as duas línguas; não é um HD que contém o francês e outro HD com o português, com a opção de você acessar um ou outro.

Álvaro: Queria acrescentar algo àquela primeira pergunta sobre ser professor de Estudos da Tradução no Brasil. Pessoalmente, só comecei a pensar a tradução depois de ter traduzido, e fui para a universidade porque senti a necessidade de refletir sobre a prática. Acho que isso faz uma grande diferença para o tipo de relação que você estabelece com o texto. Essa especificidade da tradução é muito rica, e acredito que as pessoas que começam a fazer muita teoria da tradução sem ter posto a mão na massa acabam girando em falso. Isso, realmente, é uma riqueza, e talvez seja até uma das razões pelas quais os Estudos da Tradução no Brasil estão se desenvolvendo tanto e se tornando uma referência. Você vê pensadores que vêm da Turquia, da Inglaterra, do Canadá, da Espanha e reconhecem em nós, brasileiros, uma riqueza nos estudos da tradução que faz com que nós sejamos, talvez, o lugar do mundo que tem esse campo mais vivo, ativo, rico, complexo.

Simone: Eu concordo com você, sobre isso da prática. Pensar a tradução sem ter traduzido é algo que sempre me espanta. E não sei por quê, bastante comum até...

Maurício: A minha trajetória é um pouco parecida com a do Álvaro. Eu já traduzia antes de entrar para a universidade. A meu ver, o espaço de reflexão nunca deve estar dissociado da prática. Aliás, os grandes pensadores da tradução, como Berman, por exemplo, sempre fizeram questão de enfatizar que não distinguem teoria e prática. Ele fala do momento da reflexão e do momento da experiência. E a universidade é um lugar ideal para você poder, justamente, refletir sobre aquela experiência, inclusive de forma compartilhada, porque você faz isso com os seus colegas, com os seus alunos...

Roberto: Sem a tese do Álvaro sobre retradução, a gente não teria conseguido retraduzir “Esboço de Uma Serpente”, por exemplo... O conceito foi fundamental para que a experiência pudesse se dar.

Gilles: As retraduções, mesmo que sejam de um autor já famoso ou de livros que já tenham muitas edições, quando trabalhadas com um pouco mais de cuidado, trazem a percepção das coisas que impulsionam e levam alguém a querer traduzir novamente. Porque o ponto de vista é diferenciado, a maneira de interpretar o texto é diferente.

Álvaro: Podemos pensar por que inventar a nossa própria relação com o texto, o próprio entendimento de poiesis, a partir do momento em que a gente estiver se debruçando sobre isso. Se tivermos dez traduções diretas do árabe para o italiano, para o inglês, para o francês, para o português, para o alemão, talvez tenhamos um complexo que, por todas essas obliquidades e transversalidades, possa nos dar um panorama mais colorido e menos assertivo da concepção de poesia entre os gregos ou de Aristóteles.

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