Sarolta Kóbori [1]
O objetivo deste ensaio é apresentar os resultados de uma pesquisa sobre húngaros no cinema brasileiro e, consequentemente, apontar os principais cineastas húngaros que atuaram no Brasil e sua influência no cinema brasileiro.
A pesquisa foca nos trabalhos realizados por Ákos Hamza (1903-1993), Adalberto Kemény (1901-1969), Rodolfo Rex Lustig (1901-1970) e Rodolfo Icsey (1905-1986).
Ao ler o título “Cineastas húngaros no Brasil”, a primeira questão que pode vir à mente do(a) leitor(a) é: por que os húngaros vieram ao nosso país? Qual foi sua motivação? A resposta é quase sempre bem triste: eventos históricos que os forçaram a sair da Hungria.
Breve história da Hungria
Durante séculos a Hungria foi um grande império da Europa Central. Os húngaros (apesar das ocupações de mongóis, otomanos e austríacos) sempre se sentiram como uma nação com um império relevante, poderoso. Porém, nunca na história mundial um país perdeu tanto território como a Hungria: em 1920, com o Tratado de Trianon, a Hungria perdeu 71% de seu território e quase toda sua força econômica (população, terras, indústria etc.).
No período entre as duas guerras mundiais, o então ministro da Cultura, que fizera o possível para melhorar a educação na Hungria, Kuno Klebersberg, teria dito que os únicos poderes do povo húngaro eram a sabedoria, a criatividade e a capacidade de inovação. Klebersberg nem imaginou que ainda viria a Segunda Guerra Mundial, e depois a ditadura socialista. O talento húngaro realmente viria a se tornar a melhor propaganda do país e de seu povo. Altamente traumatizada pelas invasões, guerras e a então perda de território, a nação húngara tem muito orgulho dos seus conterrâneos que alcançaram fama fora da Hungria.
Imigração húngara no Brasil
A imigração húngara para o Brasil assistiu a três grandes momentos:
- após a Primeira Guerra Mundial (húngaros oriundos dos territórios então perdidos), cujos imigrantes são chamados, pela comunidade húngara atual, de “velhos húngaros”;
- após a Segunda Guerra Mundial, cujos imigrantes são chamados, pela comunidade húngara atual, de “novos húngaros”;
- após a Revolução Húngara de 1956, contra o regime ditatorial socialista da época.
Esses três grupos, porém, não incluem todos os imigrantes húngaros que estão atualmente no Brasil.
A maioria dos húngaros chegou a São Paulo, onde permaneceu. À época, a cidade se desenvolvia rapidamente e, de fato, precisava de novos profissionais. Eles alcançaram grande sucesso em diversos setores.
Pode-se perguntar: por que escolheram o Brasil? Quando redigi minha monografia sobre a comunidade húngara em São Paulo, em 2006, a maioria dos descendentes afirmou que o objetivo quase sempre era ir para os Estados Unidos, mas, no final das contas, pareceu mais fácil a burocracia para entrada no Brasil. Espaço e possibilidades não faltavam no país, especialmente para aqueles que já possuíam experiência profissional, o que privilegiou os imigrantes húngaros: muito sábios e experientes, vieram ao Brasil com educação aprimorada e grande vontade de trabalhar. Nesse sentido, progrediram com facilidade num país que os esperava “de portas abertas”.
Vários cineastas húngaros atuaram no Brasil. Escolhi apresentar aqueles que realizaram longas-metragens e se destacaram no país.
Início da pesquisa
Em 2006, quando cheguei pela primeira vez a São Paulo e comuniquei à comunidade húngara que estudava cinema, ouvi relatos sobre Ákos Hamza, um diretor bem famoso na Hungria, que fez um único filme no Brasil.
Foi no livro Húngaros no Brasil (Szeverin, 1992, p.38), que existe graças à comunidade húngara de São Paulo, que li pela primeira vez sobre esse diretor. Por sua causa comecei minha pesquisa na Cinemateca Brasileira, onde conheci Adilson Mendes. Segundo ele, o que eu estava pesquisando na época poderia ser útil um dia.
Encontrei-me também com Ladislau Szabó, escritor do livro Hungria 1956:... e o muro começa a cair (Szabó, 2006), mas ele já estava muito doente nessa época e logo depois faleceu). Por intermédio dele o historiador de cinema Máximo Barro concedeu-me uma entrevista.
Os artistas húngaros, ao imigrarem para o Brasil, foram obrigados a enfrentar grandes desafios. O país possuía uma indústria cinematográfica pequena e fraca, em comparação com a europeia. Inicialmente, por o Brasil estar atrasado em diversos sentidos (econômica e socialmente, por exemplo); posteriormente, porque os filmes hollywoodianos dominavam os cinemas brasileiros. Diante dessa realidade, o húngaro Rodolfo Icsey, por exemplo, que chegou ao Brasil somente em 1956, é lembrado como o “pai dos cinegrafistas brasileiros”.
Adalberto Kemény e Rodolfo Rex Lustig
Um dos documentários mais significativos da época do cinema mudo foi feito por Adalberto Kemény e Rodolfo Rex Lustig. Adalberto nasceu em 1901, em Budapeste, e conhecia Rodolfo desde a infância. Começou sua carreira cinematográfica muito cedo, trabalhando como cinegrafista num laboratório de cinema quando tinha entre 17 e 18 anos, na empresa Pathé. Os dois amigos transferiram-se para a Alemanha antes de virem para o Brasil. Sobre essa época, sabe-se somente que, entre 1920 e 1921, trabalharam em Berlim, na empresa cinematográfica UFA (então Universum Film AG, atual UFA GmbH). Lustig chegou ao Brasil em 1922, e Kemény, em 1926 (Galvão, 1975, p.160). Com amplo talento e experiência, os dois se instalaram definitivamente no Brasil para trabalhar seriamente.
Lustig criou a base para seus trabalhos: desde a chegada, esteve ligado à Independência Filme e, em 1926, tornou-se o diretor técnico da empresa. Nessa época, a Independência produzia somente noticiários e documentários. Em 1928, ambos compraram a empresa, e assim nasceu a Rex Film.
Com o tempo e a multiplicação de contratos, a empresa dos dois sócios foi crescendo cada vez mais, contratando mais funcionários. Máximo Barro lembra que Kemény era responsável pela parte cinematográfica da empresa, enquanto Lustig tratava dos assuntos administrativos. É provável que, por esse motivo, as filmografias da época e os historiógrafos destaquem com mais rigor o nome de Kemény, em comparação com o de Lustig.
Nesse mesmo ano de 1928 estreou o documentário mais importante do período: São Paulo, Sinfonia da Metrópole, que será analisado mais adiante.
Quando a Rex começou, seu maior problema era sem dúvida a concorrência ... Quem não tinha essa preocupação eram os Rossi: serviço não lhes faltava, porque praticamente todas as filmagens para o Governo eram feitas por eles. Tinham o problema oposto: serviço demais, de que não podiam dar conta; eram só os dois, pai e filho – e o pai já estava velho e cansado. O sr. Kemény e seu sócio tiveram, então, a ideia de propor sociedade aos Rossi. A Rex possuía um equipamento sonoro muito bom: recentemente importado na época, não havia em São Paulo outro igual. Os Rossi se interessaram pelo equipamento ... e além disso sabiam que os húngaros eram bons profissionais. A sociedade era conveniente para ambas as partes: a Rex entrando com o equipamento e trabalho, a Rossi com um nome conhecido e clientela assegurada ... Fizeram, então, o melhor jornal cinematográfico da época: A Voz do Brasil. Foi o primeiro jornal falado de São Paulo, com gravações feitas na hora das filmagens ... Mas, infelizmente, o arquivo foi vendido ... e não sobrou nem um filme que possa ser mostrado, a título de curiosidade. (Galvão, 1975, p.161)
A programação de notícias de A Voz do Brasil mostra os trabalhos da parceria: em 15 de outubro de 1934: “Aspectos da festa húngara; Visita do embaixador francês a São Paulo; Repavimentação da cidade; Banquete no Luna Parque” (Bernardet, 1979).
Em 1931, os dois companheiros profissionais ficaram responsáveis pelas filmagens de Coisas nossas; foi quando o diretor desse filme, Wallace Downey, descobriu a grande estrela do futuro: Carmen Miranda. Nesse filme (com uma qualidade de som considerada impressionante até hoje!) aparece o grande compositor Noel Rosa, tocando violino na Banda de Tangarás, aos 18 anos.
Depois de ter produzido documentários, outros noticiários e propagandas, a Rex Film, durante seus anos finais de existência, se especializou no trabalho de laboratório: revelações, cópias etc. Além disso, os donos aceitaram trabalhos como cinegrafistas. Em 1934, Kemény era o cinegrafista, coprodutor e editor do filme O Caçador de Diamantes, de Vittorio Capellaro, único filme brasileiro que sobreviveu ao tempo e que, historicamente, possui o primeiro roteiro completo do cinema nacional (com sequências, planos, posicionamento de câmera, marca e atuação dos atores etc.).
Entre 1950 e 1954, Kemény e Lustig fizeram todos os trabalhos de laboratório da empresa Vera Cruz, o que deu “luz” ao cinema nacional. Em 1950, filmaram os ensaiosde seu primeiro filme, Caiçara. Segundo Rita Galvão (1975), a atuação mais importante de Kemény no cinema nacional brasileiro se fez por meio da Companhia Vera Cruz, onde seguiu carreira com seu parceiro. Para os donos da Vera Cruz, Kemény e Lustig tinham lugar privilegiado.
Seria impossível relembrar aqui todos os trabalhos de laboratório desse contexto, mas deve-se destacar o filme Quem matou Anabela? (1956),da companhia Maristela, pois foi o único filme dirigido por Ákos Hamza no Brasil (conforme já citado), diretor que motivou o início desta pesquisa.
São Paulo, Sinfonia da Metrópole
A dedicação dos húngaros sem dúvida é impressionante: os dois imigrantes, durante mais de um ano, passearam na cidade com uma câmera na mão, recolhendo material para o filme, sem um roteiro estabelecido.
Pode-se considerar esse filme como uma contribuição húngara para o nascimento do cinema nacional brasileiro. Segundo Fernão Ramos: “[O filme] Limite (1931) que pode ser considerado hoje … como a melhor contribuição brasileira para a avant-garde internacional, junto, talvez, com São Paulo, Sinfonia da Metrópole (1929), direção de Rodolfo Rex Lustig e Adalberto Kemény” (Ramos, 1987, p.137).
Carlos Ebert, em Pequena História da Cinematografia do Brasil, afirma: “Este documentário é, do ponto de vista da técnica cinematográfica, uma das obras mais significativas do período. Suas filmagens se estenderam por um ano e mostram uma preocupação estética nos enquadramentos, movimentos de câmera e escolha da luz, rara na época” (Ebert, 2000).
No patamar internacional, a obra de Kemény e Lustig está entre os filmes de vanguarda sobre centros urbanos na década de 1920. Merece atenção ao lado de clássicos como Berlim, a Sinfonia da Metrópole (1927), de Walter Ruttman; A proposta de Nice (1930), de Jean Vigo, e O homem com uma câmera (1929), de Dziga Vertov.
Em seus quase 70 minutos, a fita de Lustig e Kemény exibe, por meio das técnicas cinematográficas da época, os lugares e eventos mais importantes da cidade, além de sua vida da manhã até a noite.
De acordo com Máximo Barro, o filme teve apoio da Prefeitura de São Paulo, pois mostra a cidade de forma positiva. Foi anunciado como homenagem à cidade, segundo arquivo da Cinemateca Brasileira:
Você se orgulha de ser paulista? São Paulo, Sinfonia da Metrópole é a alma da cidade que você fez com seu trabalho cantando ao ritmo maravilhoso do mais formidável progresso! O romance da cidade! A labuta diária da grande massa anônima, que uma objetiva apanhou em flagrantes preciosos, sempre habilmente escondida dos olhos do grande público. É uma visão quase fantástica que se desenrola aos nossos olhos como um sonho, ora alegre, ora triste, mas sempre agradável porque mostra a cidade que nós construímos para orgulho nosso e para glória e exemplo do Brasil novo. (JCB/OESP)
A obra, aparentemente, tem as mesmas características do filme Berlim, Sinfonia da Metrópole. Em entrevista a Galvão (1975, p.163), Kemény afirma que não conhecia o filme de Ruttman. Segundo Barro (1997), seria impossível que Kemény não conhecesse, no mínimo, seu roteiro. Essa alegação é convincente: as semelhanças são grandes demais para não existir um mínimo de intertextualidade.
O material até pode ter sido apresentado sem planejamento, mas o corte final tem nítida influência ruttmaniana. Mas destaca-se aqui, também, uma diferença de suma importância: o uso de legendas criativas. A obra de Ruttman não usa legendas, nem oferece um panorama urbano amplo, mas sim uma montagem rítmica de imagens. A Sinfonia de São Paulo utiliza tal técnica como meio de elogiar o crescimento da cidade, de forma análoga à dos jornais da época. Ramos destaca, ainda, a sensibilidade social do filme de Kemény.
Rubens L. R. Machado Jr. chama a atenção (Machado, 1989, p.29),enfim, para uma grande diferença entre as duas películas: suas atmosferas. O filme alemão apresenta cenas trágicas do suicídio de uma mulher, o que contrasta com o “corre-corre” da cidade. Kemény não apresenta o homem de forma tão pessimista, porque não se acostuma com o desenvolvimento rápido de um mundo vibrante. Em São Paulo, a desviante da vida dinâmica da cidade grande é apenas uma senhora que não tem coragem de atravessar a rua. Machado explica essa diferença: as obras de uma jovem cidade brasileira representavam o desenvolvimento em si mesmo; nesse sentido, os problemas das cidades grandes, como já eram conhecidos na Alemanha (ou em toda a Europa), ainda não existiam em São Paulo. Por esse motivo, segundo ele, o filme alemão é mais dramático, enquanto o brasileiro é mais eufórico.
O objetivo não é definir o melhor por comparação. Seus diretores tinham objetivos bem diferentes. Ruttman apresentou uma linguagem cinematográfica e divulgou o poder da montagem; assim, as imagens da cidade são base para mostrar movimento e ritmo, motivo pelo qual sua obra é um clássico dos filmes de vanguarda sobre cidades da década 1920.
Kemény, por sua vez, usava os aparelhos cinematográficos para apresentar uma cidade; sua obra é um documentário clássico nesse sentido; algumas cenas de Kemény fazem um jogo com as montagens e os enquadramentos, motivo pelo qual se pode classificá-lo, também, como filme de vanguarda sobre cidades da década de 1920.
Enfim, em 1929, com um documentário de 70 minutos, Adalberto Kemény e Rodolfo Rex Lustig elogiaram seu novo lar, a cidade de São Paulo, e a maravilha da sétima arte.
O Sr. Kemény é um homem prático; gosta de trabalhar confortavelmente ... Apesar de seus 60 e muitos anos, sobe e desce lepidamente as incontáveis escadas do seu ‘labirintório’. Nasceu na Hungria, mas não se julga um estrangeiro. É brasileiro, há já muitos anos que é brasileiro. Alguns amigos acham muito engraçada esta afirmativa, feita com muita convicção e muito sotaque, jocosamente corrigindo-lhe os erros de português. O cinema é a sua cachaça; cinema é vício, uma vez que se experimente, não se pode largar mais – aliás, é o seu único, acrescenta o Sr. Kemény, que nem ao menos fuma...(Galvão, 1975, p.166)
O Sr. Kemény não gosta de tudo quanto estes moços de hoje fazem no cinema no Brasil; são um tanto complicados demais, e um pouco loucos, também. Mas acha que o fato de os velhos não gostarem não tem a menor importância, porque o mundo é dos moços. Assim como a minissaia, que foi feita exclusivamente para as pernas bonitas das mulheres jovens. O Sr. Kemény não se esquece de que, quando ele saía a passear pela cidade com a câmara na mão para filmar São Paulo, Sinfonia da Metrópole, os mais velhos também pensavam que ele era meio louco.(Galvão, 1975, p.159)
Máximo Barro salienta ainda que Kemény, apesar da idade avançada, abria os portões do laboratório cinematográfico logo pela manhã e não parava de trabalhar: “Utilizou amplamente a pequeníssima câmera ICA (Kinamo) e, com a máquina na mão, conseguiu algumas das mais impressionantes imagens urbanas do cinema brasileiro” (Filme Cultura, n.8, 1968).
Ákos Hamza, um diretor no Brasil
Ákos Didier Hamza era um artista que atuou como poeta, pintor, escultor e diretor. Sua vida, seus filmes húngaros, seus poemas, estátuas e pinturas já foram analisados minuciosamente pelo museu Hamza Gyűjtemény és Jász Galéria em Jászberény, Hungria, e por vários autores, cujos livros foram lançados há pouco.
Na Hungria, Ákos Hamza já era um diretor muito bem conhecido. Fez mais de 20 filmes, e cada um deles tornou-se um verdadeiro clássico. Trabalhou com vários gêneros, do drama até a comédia, e ainda fez um filme de ficção científica!
Em 1946, Hamza viajou a Paris para fazer pesquisas sobre televisão. Voltou à Hungria somente 40 anos depois, porque não acreditava que teria liberdade artística lá. Em Paris, trabalhou num projeto cinematográfico com o famoso filósofo existencialista Jean-Paul Sartre; posteriormente dirigiu curtas-metragens na Itália.
Durante as filmagens de um desses curtas, Il bel Tevere d’oro (1951), Mário Audrá, produtor e empresário cinematográfico brasileiro, estava contratando novos profissionais. Audrá tinha assistido a outro filme italiano de Hamza (Strano appuntamento, de 1950). O empresário, então, contratou Hamza para fazer 6 filmes. Assim, em 1953, Hamza chegou ao Brasil – com uma mala cheia de experiência artística e política –, onde passou as próximas décadas de sua vida. (Szűcs, 2003, trad. nossa)
Quem matou Anabela? (1956)
Sua sinopse, de acordo com a Cinemateca Brasileira, é esta:
Anabela, a belíssima bailarina, é assassinada, e seu corpo é encontrado à beira de uma represa em São Paulo. O comissário Ramos é encarregado do caso e interroga as testemunhas que moravam com ela numa pensão. De cada uma delas, obtém uma confissão do assassinato e uma descrição completamente diferente da personalidade da vítima. O mistério cresce, até o final surpreendente.
A história em si já promete um filme de tensão. A versão original teve a possibilidade de se tornar uma obra-prima.
Ainda na França, Hamza trabalhou com Sartre em torno de uma ideia cinematográfica interessante: a mesma história adquire faces completamente distintas quando contadas por diferentes pessoas. Esse tema foi tratado por Hamza e Sartre anos antes do lançamento do clássico Rashomon (1950), de Kurosawa.
O produtor acreditava que o público brasileiro estava tão acostumado com as chanchadas que não iria gostar de um filme sem dança e música. Por esse motivo, infelizmente, Hamza não inovou na linguagem cinematográfica do filme que, afinal, acabou sendo produzido com heterogeneidade de gênero. Uma mistura de Agatha Christie com chanchada, ou uma peça rara de film noir brasileiro, com destaque para o humor.
Lamentavelmente, o filme é composto por inúmeras cenas musicais dançantes sem motivações aparentes, o que prejudica a tensão da narrativa. Não é difícil imaginar que cenas como essas tenham sido inseridas no filme não por Hamza, mas sim por Audrá. A jovem noiva de Audrá era bailarina e não atriz. Afinal, o próprio nome de Ana Esmeralda, noiva de Audrá, aparece antes do título, antes mesmo do nome do astro do filme: Procópio Ferreira.
O fato de os filmes musicais, as chanchadas, terem atingido grande popularidade no país, não justifica a concepção de Audrá, pois existiam filmes bons e bem-sucedidos sem dança. Nos dias atuais, não faz sentido que as personagens comecem a dançar.
Rafael de Luna Freire, em sua crítica (Freire, s.d.), assinala as partes reflexivas e acredita que a mistura de gêneros alcançada é especial e torna o cinema nacional mais complexo. É difícil compreender como foi a recepção do filme na década de 1950. Um grande público assistiu à película, e o jornal Folha de S. Paulo a escolheu como melhor filme da década de 1950. Foi bem aceito, muitas pessoas o assistiram, mas a preferência do público pelos filmes hollywoodianos era evidente.
Os pontos significativos do filme são, sem dúvida: a atuação dos atores, os diálogos cômicos e a narrativa nada tradicional. Sinteticamente, o filme de Hamza era um verdadeiro entretenimento. Possui valor histórico para o cinema brasileiro, pois duas grandes lendas, Procópio Ferreira e Jaime Costa, trabalharam juntos pela primeira vez, mesmo com suas conhecidas desavenças.
Mário Audrá define o estilo da película: “A linha de Quem matou Anabela? caracteriza-se pelo romantismo marcantemente centro-europeu da época, imprimido pelo excelente Hamza e por esse mago que foi Rudolph Icsey” (Audrá, 1997, p.104).
Rodolfo Icsey
Rodolfo Icsey (Rezső Icsey, em húngaro) foi um dos diretores de fotografia mais importantes na Hungria e no Brasil. Icsey nasceu em Poprádfelka (atual Eslováquia, antiga Hungria), filho de família de fotógrafos.
Aprendeu sua profissão com o pai. Em 1919 trabalhou num estúdio de fotógrafos; depois, num laboratório de fotografia; assistente de fotografia na Indústria de Filmes Pedagógicos, foi diretor de fotografia jornalística e, a partir de 1934, de curtas-metragens. Em 1936, já rodava longas-metragens na companhia Hunnia, inclusive dirigiu filmes pedagógicos. Foi professor do ramo entre 1945 e 1946 na Faculdade de Cinema da Universidade de Teatro e Cinema (Színiakadémia). Morou fora do país a partir de 1947. Em Viena (Áustria) e Munique (Alemanha) trabalhou como assistente de fotografia e, mais tarde, em Roma (Itália), fez filmagens de propagandas curtas. (Magyar..., s.d., trad. nossa)
Entre os mais de 30 filmes produzidos na Hungria, destacam-se a ficção científica Szíriusz (1942) e a comédia Egy szoknya, egy nadrág (Uma saia, uma calça, de1943, tradução nossa), de Ákos Hamza. Icsey produziu mais de 80 obras entre documentários, curtas e longas-metragens.
Icsey chegou ao Brasil convidado por Ákos Hamza para a produção de Quem matou Anabela? (1956). Carlos Ebert, em Pequena História da Cinematografia do Brasil, dedica-lhe um parágrafo:
A história da cinematografia paulista desta época não estaria completa sem um breve comentário sobre Rudolf Icsey. Dotado de refinada técnica e de um senso estético apurado, Icsey revelou-se um mestre do claro-escuro e da luz recortada. Sua falta fez-se notar quando deixou de fotografar os filmes de Khouri. (Ebert, 2000)
Mário Audrá conta um episódio que mostra o alto nível do trabalho de Icsey:
esse mago que foi Rudolph Icsey, especialista em fotografar mulheres, capaz de tornar as bonitas ainda mais bonitas e de transformar em verdadeiras beldades as menos favorecidas. Ao iluminar uma cena, era impressionante como ele conseguia ressaltar os melhores ângulos de uma estrela. Seu olhar tornava-se tão penetrante e tamanho era o carinho de sua câmera para com as mulheres, que certa vez lhe disse: “Cuidado, Icsey, qualquer dia você vai engravidar alguém através das lentes”. (Audrá, 1997, p.104-105)
Ákos Hamza relembra a chegada de Icsey ao Brasil:
A produção do cinema foi providencial no Brasil. O país nem possuía diretor de fotografia qualificado. Assim, a meu pedido, o empresário trouxe Rudi Icsey, que ficou por lá e alcançou uma carreira excepcional, trabalhando em muitos produções, enquanto ensinava os brasileiros a fotografar. (Hamza, 1987, p.42, trad. nossa)
Essa atitude pedagógica que se aponta em Icsey é o que o diferenciou à época. Máximo Barro acredita que outros estrangeiros, que também eram diretores fotográficos, guardaram sua sabedoria para si, enquanto Icsey a distribuiu com prazer. Também Judit Ágnes Szilágyi observa essa sua peculiar característica:
Icsey sempre achava importante ajuda aos novos colegas de profissão. Seus alunos foram Ferenc Fekete, Barnabás Hegyi, Gyula Kolozsvári e, mais tarde, na Itália, Giovanni di Venonzo, que trabalhava com Fellini na época. Continuou ensinando no Brasil. Acreditava que técnicas específicas eram de suma importância na produção de bons filmes, de forma que sua experiência deveria ser sempre transmitida aos jovens aprendizes. (Szilágyi, s.d., trad. nossa)
Obviamente, não apenas os novos diretores fotográficos, mas também aqueles cineastas fazendo seu primeiro filme acolheram seus conselhos. Até que o casamento nos separe (1968) foi o primeiro trabalho do cineasta brasileiro Tambellini, mas na época Icsey já havia feito mais de 60 filmes.
Os nomes de Khouri e Mazzaropi, juntos, chamam a atenção para uma outra característica. Como ainda conta Máximo Barro em entrevista de 2007, Icsey era capaz de trabalhar em qualquer estilo: “ele não trabalhou para si, mas para o filme”.[2]
Icsey trabalhava calma e rapidamente, característica atraente para diversos diretores, que o chamavam para participar das fotografias de seus filmes – algo que também acontecia na Hungria. Também a variedade de seus gêneros e estilos demonstra bem sua flexibilidade artística. Podia realizar ideias de Mazzaropi, que fez 17 filmes e contratou Icsey para dez filmes em razão de seu trabalho ágil e profissional.
Já de estilo completamente diferente, a obra dirigida por Tom Payne, Arara Vermelha (1957), segue o estilo dos tradicionais filmes de aventura, classificados como film noir. O ambiente colabora: tempestade, natureza, redes de descanso, tendas indígenas e cortinas de palha o tornam misterioso.
Assim, no Brasil, além de ter um modo específico de trabalho, Icsey ainda possuía uma experiência profissional superior à de seus colegas, de modo que contratá-lo era mais seguro. Além disso, ele assumia todas as filmagens possíveis, pois sempre precisava de dinheiro. Barro lembra que, durante cerca de 4 meses, Icsey trabalhou concomitantemente em dois filmes: Cleo e Daniel (1970),durante os dias da semana, e A arte de amar bem (1970), nos fins de semana. O artista produzia de três a quatro filmes por ano, o que dificulta escolher quais são os melhores. Apresentarei apenas um dos principais de sua carreira.
Noite vazia (1964)
O talento de Icsey é bem demonstrado na realização das ideias de diretores especiais, como Walter Hugo Khouri, que colocou o indivíduo solitário no foco dos seus filmes, o que o tornou um cineasta único no Brasil.
Segundo Barro, Icsey não possuía um estilo próprio como diretor de fotografia; queria, na verdade, realizar o “sonho” do diretor. A opinião de Ebert é contrária, pois acredita que os filmes de Khouri sem a colaboração de Icsey não alcançariam tamanha qualidade. Sem dúvida, a maior magia dos filmes de Khouri consiste em suas imagens, que foram produzidas por Icsey.
Em Noite vazia (1964), Khouri usa poucas pessoas para apresentar o indivíduo solitário da cidade grande, incapaz de se comunicar. Cada imagem do filme Noite vazia tem planejamento, uma harmonia perfeita. Essa obra – que nos lembra os dramas de Bergman – é considerada um dos filmes mais importantes do cinema brasileiro.
Os cineastas húngaros encontraram portas abertas no Brasil e, agradecendo à nova terra, enriquecerem a arte cinematográfica brasileira. Máximo Barro, que conviveu com muitos deles, resume assim seus trabalhos: “Foram poucos, mas ajudaram muito no desenvolvimento do cinema nacional brasileiro”.[3]
REFERÊNCIAS
AUDRÁ JR., Mário. Cinematográfica Maristela: memórias de um produtor. São Paulo: Silver Hawk, 1997.
BARRO, Máximo. São Paulo, Sinfonia da Metrópole. São Paulo: Facon, 1997.
BERNARDET, Jean Claude. Filmografia do Cinema Brasileiro 1900-1935. São Paulo: Governo do Estado de São Paulo/ Secretaria da Cultura, 1979.
EBERT, Carlos. Pequena História da Cinematografia do Brasil. 2000. Disponível em: http://abcine.org.br/site/index.php?option=com_content&task=view&id=63&Itemid=1.
FILME CULTURA (revista). São Paulo: INC (Instituto Nacional de Cinema), 1968.
FREIRE, Rafael de Luna. Quem Matou Anabela? s.d. Disponível em: http://www.telabrasilis.org.br/texto_cineclube_07_janeiro.html.
GALVÃO, Maria Rita. Crônica do Cinema Paulistano. São Paulo: Ática, 1975.
HAMZA, Ákos. Élő filmtörténet. Hamza D. Ákos a Magyar Filmintézetben. Filmkultúra – Filmelméleti és filmművészeti szemle, Budapest, n.12, p.42, 1987.
MACHADO JR., Rubens L. R. São Paulo em movimento: a representação cinematográfica da metrópole nos anos 20. Dissertação (Mestrado em Cinema) – Escola de Comunicações e Artes (ECA), Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, 1989.
MAGYAR Életrajzi Lexikon. s.d. Disponível em: http://mek.oszk.hu/00300/00355/html/ABC06707/06710.htm.
RAMOS, Fernão. História do Cinema Brasileiro. São Paulo: Círculo do Livro, 1987.
SZABÓ, Ladislao (Org.) Hungria 1956: ...e o muro começa a cair. São Paulo: Contexto, 2006.
SZEVERIN, Kögl J. Magyarok Brazíliában. São Paulo: Könyves Kálmán Szabadegyetem, 1992.
SZILÁGYI, Ágnes Judit. The one who could photograph the soul: Rudolf Icsey and hungarian filmmakers in Brasil. s.d. Disponível em:http://www.filmintezet.hu/magyar/filmint/moveast/4/mov4_1.htm.
SZŰCS, Rita. Hamza-filmnapok São Paulóban. Filmkultura, Budapest, dec. 2003. Disponível em: http://www.filmkultura.hu/2003/articles/reviews/saopaulo.hu.html.
[1] Professora de Literatura, Língua Húngara e professora de Língua Húngara para Estrangeiros; Professora e Pesquisadora de Cinema. Doutoranda em História do Cinema na Universidade Eötvös Loránd, em Budapest. Professora universitária da Universidade de Pécs, atua como Coordenadora do Curso de Extensão de Língua e Cultura Húngara na Universidade de São Paulo.
[2] Entrevista concedida por M. Barro à autora, 2007.
[3] Entrevista concedida por M. Barro à autora, 2007.
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