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DA GEOMETRIA DAS FORMAS, O VOO DESEJANTE

Poesia e plasticidade nas obras de Pascal Ruesch

Susanna Busato[1]

 

 

A água, o vento, a claridade,
De um lado o rio, no alto as nuvens
Situavam na natureza o edifício
Crescendo de suas forças simples.

 

Na leitura da poesia de João Cabral de Melo Neto flagro um roteiro possível para iniciar esta reflexão sobre as relações entre as artes plásticas e a poesia, motivada pela Exposição “Linhas Quadrados Reflexos”, do artista plástico franco-suíço Pascal Ruesch. A última estrofe do poema “O Engenheiro”, de João Cabral de Melo Neto (O Engenheiro, 1945), que transcrevo acima, leva-me a percorrer uma imagem concreta, a do edifício-poema, que nasce, no poema, de uma singular esfera, porque objetiva na sua natureza interna uma origem primitiva e inocente, análoga às formas naturais e assim cresce pura linha, pura geometria das formas. Esse corpo que se ergue aflora como voo desejante. O que me faz lembrar também o poema “Mulher Sentada”, do mesmo livro:


Mulher entre sonhos.
Nuvens nos seus olhos?
Nuvens sobre seus cabelos.

(A visita espera na sala;
A notícia, no telefone;
A morte cresce na hora;
A primavera, além da janela).

Mulher sentada. Tranquila
Na sala, como se voasse.

 

Na pontuação da cena desta “mulher sentada”, compacta, presente e distante, colhida no tempo e flagrada no espaço de seu desejo intacto, entre pombos e nuvens, signos aéreos e claros, naturais, isentos de qualquer corrupção, seu olhar deseja, sonha; nosso olhar penetra esse quadro, essa moldura, adivinha, se deposita, espera junto a ela. Seu corpo é o corpo do poema, que torna visível a imagem singular e estranha, ainda que familiar, dos signos da moldura: mulher, pombos, nuvens, olhos, cabelos, visita, sala, notícia, telefone, morte, primavera, janela.

O fio que estendo aqui a partir da poesia é o fio que vejo tecer as obras da exposição “Linhas Quadrados Reflexos”, do artista Pascal Ruesch, que o museu Casa Guilherme de Almeida abrigou de maio a outubro de 2016, nas dependências de seu Anexo. As obras aqui expostas falam de um corpo. Falam a partir e do centro do corpo. Ou melhor: tornam visível e móvel este corpo que olha o corpo de lá que se entrega na sua tensa geometria. Nas molduras das obras, o conflito tátil das formas e materiais emerge como um olho por sua vez, que na sua mobilidade interna espacializa os resíduos de um mundo de referências, de outros corpos visíveis sob a pele de suas formas. É um corpo desejante.

As obras em exposição falam de deslimites. A moldura, essa carcaça vítrea e transparente a separar o fora e o dentro, performatiza a aura inerente ao objeto em sua revelação nascente. E assim não o impede de desejar. Ao separar, portanto, a moldura impõe o limite entre um mundo pragmático e retilíneo, o de cá, e um mundo poético e curvilíneo, o de lá. Podemos ler: o limite entre o lado de fora e o lado de dentro. Mas o deslimite se impõe na pulsão interna da obra que mira o fora porque dele é “signo comovido”, ou seja, que co-move, que se move com o outro, que movimenta, desalinha, desloca, e, por que não, ensina a “como ver” o mundo. Diria mais, a obra é, desse mundo, tradução, transcriação: deslimite que atravessa a membrana porosa do próprio mundo das formas e de seus materiais. A moldura oscila, portanto, e, porosa, entreabre a tela como membrana tátil para o olho.

As obras que aqui temos são orquestrações do sensível. Por isso o corpo como o centro. Porque é de dentro do corpo do mundo que emanam as sensações promovidas pelo conflito tátil, geométrico e cromático das composições. É do mundo e para o mundo que os signos todos na sua primitiva natureza transpassam os limites do ser um “aqui e agora” que mira a si mesmo enquanto guarda de seu passado o eco de sua natureza concreta. Para o olhar que mira esse outro da obra, o corpo se reveste de “um verso e um reverso, um passado e um futuro”, como alude Merleau-Ponty ao enigma do corpo que é ao mesmo tempo vidente e visível. Transponho aqui essas palavras do fenomenólogo francês para o âmbito das obras desta exposição, nas quais flagro um corpo que olha o mundo e que ao mesmo tempo pode olhar-se, pois ambiguamente se coloca. Ocupa ele a zona intervalar de um ser/estar que tensiona esse olhar (o dele/ o nosso) na duração do instante.

A zona do intervalo é a mesma da poesia que feita de palavras também se revela tensa no jogo formal com que hesita entre som e sentido, entre forma e referência, entre um lá e um cá das coisas. Em outras palavras, a espessura/textura da imagem do real fica na zona de conflito, como podemos ler na analogia das formas na estrofe citada do poema “O Engenheiro”, de Cabral. Os elementos da natureza como a compor um espaço metafísico e, no centro dessa paisagem incorpórea, o edifício-poema, que nasce, se ergue como engenho e arte, inocente e denso na sua forma desejante. Tomo para mim as palavras de Merleau-Ponty mais uma vez:

 

Eu teria grande dificuldade em dizer onde está o quadro que miro. Pois eu não o miro como se olha para uma coisa, não o fixo no seu lugar, o meu olhar erra nele como nos nimbos do Ser, eu vejo de acordo ou com ele, mais do que propriamente, o vejo a ele. (Merleau-Ponty, 2009, p.23)

 

As obras de Ruesch miram o mundo a partir de dentro dele e criam suas cifras, seus tons, sua pauta, na qual a imagem do real é transpassada pelo florete do artista que luta com os materiais sem rosto que vai encontrando no seu périplo. Essa luta reside, eu diria, num processo tradutório, no qual o artista se coloca como um operador sígnico dos materiais que recolhe do universo. O que percebe no mundo já está na esfera do sentir: o artista percebe um mundo em movimento, um mundo de analogias. Dar a elas concretude é o grande lance, o grande desafio. A fragilidade de sua obra se assemelha à obra fabricada pelo poeta – o elefante, do poema “O Elefante”, de Drummond. Esse poema-sujeito, feito de resíduos tomados a diversos materiais e recombinados numa estrutura nova, que desafiam a gravidade e saem em busca do que lhe falta. Objeto de bricolagem, sua natureza frágil apresenta uma dupla operação de análise e de síntese. Ou seja, como declara Gérard Genette (1972, p.144), essa operação implica “extrair diversos elementos de diversos conjuntos constituídos” e de “constituir a partir desses elementos heterogêneos um novo conjunto no qual, a rigor, nenhum dos elementos reutilizados encontrará sua função de origem”. Poderíamos associar o resultado desse processo de composição a uma partitura musical, na qual as notas (linhas, pontos, texturas, volumes, cores) se organizam em acordes e não em linha melódica, pois a leitura se dá por simultaneidade e similaridade e não por sucessividade e combinação tão somente. Não seria, portanto, o produto final a mera combinação de elementos na pauta espacial das obras, mas a performance de uma simultaneidade de signos a serem lidos/vistos/sentidos na sua qualidade em si, e nos diagramas que tecem no espaço. Nesse processo de bricolagem, desreferencializam-se os elementos da composição, que acabam por performatizar entre si, e também com seus lugares de origem, um diálogo plural.

O abstrato das composições das obras em exposição aqui tece algo semelhante ao que João Cabral concebeu como um “procedimento despoetizador”, que afasta as analogias de primeiro grau e inaugura um processo mimético de “presentificação de uma experiência” através dos materiais tomados do mundo. A pedagogia das obras estaria inserida justamente no percurso desse processo, apontando-nos para um movimento interno inaugurador de novas percepções. Ao depararmos com as obras, o que vemos são índices que num primeiro momento nos apontam para as qualidades sinestésicas e cinéticas das composições, que modulam uma caligrafia que lhes dá presença icônica. Os diagramas internos promovem metáforas singulares e nesse percurso sensível da percepção absorvemos o icônico, a qualidade interna que respeita cada objeto em relação a um outro com o qual tece um diálogo dinâmico.

Esta minha leitura até aqui se limitou a refletir sobre a impossibilidade de pensar a obra além de si mesma. Encontro um eco nas palavras do pintor René Magritte para me convencer de que a atividade cognitiva (e a obra artística em si se situa nessa ação) busca o “l’impossible”, ou seja, segundo Magritte, esse “impossível” seria o “mistério” do sentido das coisas, que é inerente ao ser das coisas. Não serve muito para nós saber de onde vem a matéria que constrói os fios ou a superfície fria de algumas obras aqui, ou de que matéria é feita a linha que liga os pontos equidistantes de outras, por exemplo. Sua natureza, ainda que conhecida, não nos elucidaria o sentido ou os sentidos todos que nem imaginamos das obras aqui. Por isso, afirma Duchamp (citado em Magritte, 2012, p.10) que “c’est le regardeur qui fait le tableau” (“é o observador que faz o quadro”). Sendo, portanto, necessário repetir que o objeto artístico, no contexto presente desta exposição, não apontaria para uma realidade externa, mas para o seu processo formal. Longe de ser um reconhecimento, o olhar que vê a obra se desdobra como ela no espaço curvo onde nasce um crisantempo, para mencionar aqui a imagem formulada por Haroldo de Campos desse fluxo contínuo do olhar que tece e retece na linguagem os fios do tempo e do espaço numa metáfora contínua de um sentimento único (imagem de Hölderlin lendo a lírica) a dialogar as formas visuais com a poesia, essa flor em cujo centro tudo morre e renasce em busca de uma forma.

E onde estaria essa forma? Guilherme de Almeida, em “Poemas do Informe” (do livro Dispersão, de 1955) responde com seu “Álibi”: na “Presença geométrica das fugas sem face”? N“os ossos vazios” que “bebem o oásis de borracha”. Continua o poema: “Há visões despojadas / na solução sem síntese das ondas. / No entanto as órbitas passam / porque o supérfluo anula.” O “álibi” do poema é o argumento que o poema tece enquanto se presentifica como tal: afirma sua presença num espaço outro, de vacuidade. O movimento de fuga cria o espaço abstrato e totalizador, no qual as formas são possíveis porque distantes, despojadas e entregues ao acaso das ondas, sua solução sem síntese, portanto aberta para o movimento orbital do olhar.

Termino minha fala com uma indagação. O que traduzem as obras do artista Pascal Ruesch? Difícil dizer. Eu diria que o processo construtor é metonímico. Apreende do universo seus traços residuais e os justapõe numa configuração sintagmática cuja resolução burla a referência, o familiar, para criar a própria referência. Esse procedimento dá-se por meio de um “habitar por dentro” o outro, ação que “desentranha do mundo” uma nova presença, ou ainda, uma pulsão não antes percebida. Colocar, portanto, em conflito os materiais que o artista recolhe do mundo é uma ação que gera o espaço poético de coordenadas que traçam sua presença mimética responsável não por imitar o outro do mundo, mas por construir uma mimese interna, produtiva, sugestiva e estranha. É no espaço de vacuidade da obra que o possível da forma se traduz como desejo.

O artista dá ao mundo o dom do visível, ou seja, torna sensível ao olhar a natureza ética das coisas, sua resistência à corrupção. Devolver a natureza ao mundo, colocando-a em crise diante de si própria, é a ação necessária para que passado e futuro se encontrem num presente de falta. É da falta, como na poesia, que as texturas e linhas, planos aéreos e terrenos, de materiais tirados à natureza animal e mineral, revelam o mundo na sua harmonia vertical de timbres, a ecoar o possível no impossível. Sugerir, eis o objetivo. Um modo de transcender o mero referente das coisas, tomadas na moldura que as separa entre si. Encontrar a comunhão com os signos dessa floresta é o grande lance de uma obra como a de Ruesch, tal como as temos aqui nesta exposição.


 

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Guilherme de. Dispersão. Toda poesia. São Paulo: Livr. Martins Ed., 1955. Tomo VII.

GENETTE, Gerard. Figuras. Trad. Nícia Adan Bonatti. São Paulo: Perspectiva, 1972.

MAGRITTE, René. Les mots et les images: choix d’écrits. Préface de Jacques Lennep. Bruxelles: Labor, 2012.

MELO NETO, João Cabral de. Poesias completas. 3.ed. Rio de Janeiro: Livr. José Olympio Ed., 1979.

MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. Trad. Paulo Neves. Lisboa: Nova Vega, 2013.


[1] Poeta e professora da Unesp de São José do Rio Preto. Publicou o livro de poemas Corpos em cena (Patuá, 2013), finalista do Prêmio Jabuti em 2014. Seus interesses recentes de pesquisa centram-se nas relações entre poesia e espaço urbano, com ênfase na poesia brasileira moderna e contemporânea.

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