Adriano Aprigliano [1]
Desde o segundo semestre de 2016, tenho trabalhado na tradução do poema épico de Públio Virgílio Marão, a Eneida (séc. I a.C.). A novidade desta tradução reside, antes de mais, na forma do verso. Falo em novidade não da forma em si mesma, mas, ao que me parece, do emprego dela na tradução dos épicos gregos e latinos – e em especial da Eneida –, porquanto esta forma de verso é bem conhecida da tradução ibérica: trata-se do verso assinarteto composto de dois hemistíquios heptassílabos, a redondilha maior, divididos por cesura forte; os acentos, preferi marcá-los em cada hemistíquio, em geral, da seguinte maneira:
Com padrão ternário “datílico”,
1´23 4´56 7´8 //
ou com o acento na posição 2 do primeiro pé,
12´3 4´56 7´8 //, e.g.:
Sus, ora os reis, ora os tempos // dos casos, Érato, o estado
de coisas que era no Lácio antigo quando lá aporta
exército ádvena frota primeiro às orlas ausônias,
eu narrarei e reconto da prima pugna os exórdios.
(VII.37-45)
Esta forma, como disse, nada tem de novo, sendo o verso comum da épica ibérica, o chamado Romancero Viejo, recolhido nos sécs. XVI e XVII. Mesmo o acento que chamei ternário “datílico” por lá não raro se acha:
Ay Diós que buen caballero fué don Rodrigo de Lara,
que mató cinco mil moros com trescientos que llevaba!
(apud El Romacero Viejo, Cátedra, 1997)
Como se vê pelo segundo verso do passo supracitado, acham-se decerto praticadas ainda outras acentuações, sendo a mais comum a da célebre Canção do Exílio de Gonçalves Dias (1823-1864) “Minha terra tem palmeiras,” com um “anapesto” inicial. Ademais, o verso dos cantares épicos ibéricos não costuma ser rígido no número de sílabas... Seja como for, este verso tão tradicional, de medida velha, foi abandonado em favor da medida nova italiana pela poesia épica culta que se desenvolveu no século XVII na península e parece não ter sido usado na tradução da épica antiga. Muito perto dela chegou a proposta já clássica de C.A. Nunes, com uma sílaba poética a mais (tenho ciência de que o tradutor não pensava em hemistíquios dum assinarteto, sim em verso uno, mas vá lá, cabe):
12´3 4´56 7´8 // 12´34 5’67 8´9
A nau de Abante, a de Aletes // a mais do que todas possante (I.121)
A divisão rítmica de seu verso também muitas vezes se pode fazer em três membros:
Logo percebe / tratar-se dos dolos / da⁀irmã rancorosa (I.130)
(Eneida, trad. de C.A. Nunes, Hedra, 2014)
Possibilidades diferentes de cesura nós também propomos. Uma delas se aplica, de fato, a todos aqueles cujo primeiro pé do segundo hemistíquio se inicia por acento forte. Essa mudança de posição da cesura cria dois membros de verso de extensão distinta. Veja-se e.g.:
Findas ali as demais // comidas, como a deitar
mordida à Ceres delgada // falto comer obrigava
e a violar nas audazes // mãos e maxilas da crosta
fatal a orla e nem poupam // os chatos quadros, — As mesas,
céus! até mesmo comendo // já vamos, di-lo somente
Iulo e mais não graceja, // que a voz ouvida às fadigas
dava fim já de saída // e, inda dizendo, lha furta
o pai à boca e, do nume // estupefato, lha tapa. (VII.112.119)
Na divisão acima, temos a cesura normal do verso, medial, que divide os membros do verso em porções simétricas de sete sílabas poéticas. Mas veja-se abaixo o deslocamento da cesura na leitura como reconfigura todo ritmo de certos versos:
Findas ali as demais // comidas, como a deitar
mordida à Ceres delgada falto // comer obrigava
e a violar nas audazes mãos // e maxilas da crosta
fatal a orla e nem poupam // os chatos quadros, — As mesas, (...)
Esse movimento da cesura faz do primeiro membro do verso um eneassílabo, do segundo, um pentassílabo ou hexassílabo. Essas possibilidades de variação, que dependem da decisão do leitor ao recitar o verso, a meu ver enriquecem, tornando mais complexas, as características suas rítmicas. Ademais, sugiro que essa possibilidade de variação atende a uma das demandas da adaptação dos ritmos da poesia hexamétrica latina e grega à nossa métrica acentual, uma vez que o verso hexâmetro datílico também possibilita variação na posição da cesura.
Outra característica de minha tradução, que contribui tanto para o ritmo como para a sonoridade e musicalidade do texto, é a presença de assonância do último pé (sílabas 7 e 8) do segundo hemistíquio superior com a último pé (sílaba 7 e 8) do primeiro hemistíquio inferior, cf., e.g.
Mal os solados a tendas tocam alados, constata
Mercúrio Eneias no ato, fundando fortes e tetos
novos fazendo. Carrega sabre, demais, estrelado
em jaspe púnico e em capa arde de múrice tírio,
caída aos ombros, que Dido, dom, abastada lhe dera
e nela entretecera teias douradas de fios. (IV.260-264)
Observe-se que aceito a assonância não exata de timbres vocálicos, neste trecho da vogal “e” (é e ê, no último verso, em -déra com -cêra; veja-se no entanto, no primeiro pé, a consonância da vogal: e néla). Considero que o recurso à assonância, em preferência à rima exata, obtém maior variação de sonoridade e é mais adequado a uma forma de verso que pretende evocar o hexâmetro latino que, como se sabe, não faz uso da rima. Com efeito, entendo esse recurso como uma maneira de criar um meio termo entre a tradição da poesia românica rimada e a poesia greco-latina antiga, não rimada, mas profundamente assonante a aliterativa.
Além das novidades de forma relativas à base rítmica e sonora do poema, também minha tradução se pretende um experimento de expansão das possibilidades sintáticas e semânticas da língua portuguesa, regulada pela da tradição poética e pelas exigências de expressão e linguagem próprias da poesia de gênero elevado.
Tratar disso tudo aqui não será possível, mas peço que atentando para a estrutura métrica descrita acima, leiam em voz alta a passagem abaixo, para que realizem e escutem os efeitos de som, tom, sentido e surpresa que pretendo.
ENEIDA, VII.29-129
E já Eneias imenso do mar mirando divisa
um bosque. O rio Tiberino dele ao través em ameno
fluxo, dos vórtices lestos, da areia nímia louro,
no mar despeja-se. Em torno variegadas e arriba
aves às margens usadas do rio e álveo os ares
com canto acariciavam voando sobre o arvoredo.
Que verguem rumo e avertam à terra as proas ordena
aos companheiros e ledo penetra a escura corrente.
Sus, ora os reis, ora os tempos dos casos, Érato, o estado
de coisas que era no Lácio antigo quando aporta
exército ádvena frota primeiro às orlas ausônias,
eu narrarei e reconto da prima pugna os exórdios.
Tu, diva, o vate memora. Eu direi guerras horrendas,
direi batalhas e reis que à morte arroja coragem,
tirrenas forças, em armas coata toda a Hespéria.
Maior já se me revela ordem de coisas, engendro
maior empresa. Regendo cidades plácidas, prados
o rei Latino em paz já ia longa longevo.
De Fauno e da de Laurento Marica ninfa nascido,
ouvimos. Fauno, é Pico seu pai, e este por pai
a ti, Saturno, declara: do sangue tu o autor último.
O rei — desígnio dos súperos — não tinha filho nem prole
viril, que, mal de ser jovem deixava, lh’arrebataram.
Guardava a casa e tão vastos domínios uma só filha,
madura para marido, já pronta em anos às núpcias.
Que a pretendiam pois muitos do Lácio havia imenso,
da Ausônia inteira; pretende ante os mais todos mais belo
Turno, de avós e avoengos potente, a cônjuge régia
a quem com ardor que excede se empenha em ter para genro;
Portentos obstam dos deuses no entanto em vários terrores.
No centro — os interiores — da casa havia loureiro,
de copa sacra, no medo há muitos anos guardado;
o qual, dizia-se, achara, as bases quando à cidade
deitava, o pai e sagrara Latino a Febo, ele mesmo,
e laurentinos por ele pusera o nome aos colonos.
Abelhas densas (assombra dizê-lo) imenso zunindo
’través do etéreo líquido tranando o ápice sumo
assediaram-lhe; e, umas às outras patas atando,
pendeu prendendo-se a um ramo frondoso o súbito enxame.
Diz logo o vate: Estranho, nós vemos, chega varão,
que pede com batalhão as mesmas partes, egressos
da mesma parte, e a excelsa cidadela senhoreia.
Demais, enquanto incensa com castas tochas as aras
e junto a virgem se acha do pai Lavínia, viram
pegar-lhe fogo — horrível!— às longas crinas e em chama
cremar-se já crepitante em todo ornato, acesa
na coma régia, acesa na sua insigne coroa
de gemas, e já de loura envolta luz fumacenta
ser e espalhar pelo templo inteiramente Vulcano.
Foi isto apavorante, contou-se, assombro de ver:
ilustre havia de ser em fama e fados cantavam
Lavínia e ao povo presságio de grande guerra trazia.
Mas, dos portentos aflito, já busca o rei os oráculos
a Fauno, o pai que diz fados, e d’alta Albúnea os bosques
consulta, a qual, dentre os bosques máxima, em sacra ressoa
cascata e exala hedionda espessamente mefite.
D’Itália, quando duvidam, as gentes, toda a Enótria
daqui requestam respostas. Cá traz os dons sacerdote
e, sob a silenciosa noite nas peles que alastra
de ovelhas sacrificadas ao que adormece e interroga
os sonhos, muitas de modos imagens maravilhosos
voando vê e várias vozes já ouve e frui do colóquio
dos deuses e nos Aornos profundos fala a Aqueronte.
Neste lugar, requerendo também Latino respostas,
a cem borregas o próprio ritualmente imolava
e, de seu couro amparado, nos velocinos jazia
lastrados. Voz repentina do imo bosque responde:
Não busques que a matrimônios latinos unas tua filha,
nem tu a fies, meu filho, a prontos tálamos: genros
já vêm chegando estrangeiros que o nosso nome elevem
com o sangue aos astros e os netos de cuja estirpe a tudo
sob os pés quanto perlustra o sol em atravessando
desde um a outro Oceano verão girar e reger-se.
Do pai, na noite silente, de Fauno, estes oráculos
e avisos dados não cala na boca o próprio Latino,
mas revoando mui gira a Fama e pelas cidades
da Ausônia, a mocidade laomedôntia à orla
gramada como a frota atasse, apregoara.
Eneias mais o primaz comando e o belo Ascânio
os corpos seus sob os ramos descansam d’árvore alta;
convívio instauram e farros por sobre a relva espraiam
candiais por sob os manjares (inspira o próprio Júpiter)
e o chão de Ceres com frutas agrestes avolumavam.
Findas ali as demais comidas, como a deitar
mordida à Ceres delgada falto comer obrigava
e a violar nas audazes mãos e maxilas da crosta
fatal a orla e nem poupam os chatos quadros, — As mesas,
céus! até mesmo comendo já vamos, di-lo somente
Iulo e mais não graceja, que a voz ouvida às fadigas
dava fim já de saída e, inda dizendo, lha furta
o pai à boca e, do nume estupefato, lha tapa.
Sem mora diz: Pelos fados terra que a mim se destina,
salve tu; salve vós, fidos, ó meus troianos Penates!
Esta é a casa, é a pátria. Pois a mim — ora reavivo —,
arcanos tais do destino meu pai Anquises legou-me:
Quando a praias ignotas aportes, filho, e coaja
a fome, à falta de pratos, as mesas a consumires,
exausto casas aspires e ali te lembres de a braço
primordiais levantares os tetos e entrincheirá-los.
Esta era a fome, esperava ela por nós derradeira,
dos infortúnios a termo.
[1] professor de língua e literatura latina na FFLCH/USP; traduz poesia e filosofia do latim, do sânscrito e de algumas outras línguas; publicou Da palavra [Vākyapadīya] (Unesp, 2014); tem no prelo uma tradução de doze Upaniṣades (Edipro, 2019) e outra do Canto VI da Eneida de Virgílio (Syrinx, 2019).
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