Interações e influências entre a subcultura punk e o maior poder suave do mundo: análise dos filmes ‘Repo Man: a onda punk’ e ‘Suburbia’
Franthiesco Ballerini [1]
Algumas visões sobre o poder da cultura
Costuma-se ler, nos livros de história, que o décimo sexto presidente dos Estados Unidos, Abraham Lincoln, havia dito certa vez: “Quase todos os homens são capazes de suportar adversidades, mas se quiser por à prova o caráter de um homem, dê-lhe poder.” O poder é um mecanismo de ação cotidiana estudado pela humanidade há séculos. Nos anos 1980, quando a Guerra Fria já estava dando sinais do seu fim pelo gradual esgotamento do modelo soviético, o cientista político Joseph Nye (2005), analisando as forças que movimentaram o poder no século 20, cunhou o termo soft power (poder suave), para designar “a habilidade de conseguir o que se quer através da atração, em vez de coerção ou pagamentos” (tradução nossa). O modelo de vida norte-americano, conhecido como American Way of Life, não foi eficiente porque governos de Washington impuseram-no, com armas, sanções ou ameaças, para outros países. Ao contrário, este estilo de vida foi paulatinamente disseminado por meio do produto norte-americano que trafega constantemente pelo mundo desde os anos 1920: o cinema de Hollywood. Mas o modo de vida norte-americano tampouco foi eficiente porque era tema destes filmes hollywoodianos. Ele foi “vendido” ao mundo por meio de produtos, ideias, valores e modos de vidas inseridos em personagens que sacudiram o imaginário do planeta e seduziram grandes populações a querer ter este mesmo modo de vida. Poder suave:
é a habilidade de conseguir o que se quer através da atração, em vez de coerção ou pagamentos. Surge da atratividade de um país por meio de sua cultura, ideais políticos e políticas. Quando você consegue que os outros admirem seus ideais e querem o que você quer, você não precisa mais gastar muito em políticas de incentivo e sanções para movê-los na sua direção. Sedução é sempre mais efetivo que coerção, e muitos dos valores como democracia, direitos humanos e oportunidades individuais são profundamente sedutoras (NYE, 2005, p. 24, tradução nossa).
Em adição, Ballerini afirma, em Poder Suave (2017), que manifestações culturais dotadas de poder suave são necessariamente aquelas de penetração e impacto internacional, rompendo barreiras geográficas, sociais e econômicas em diversos cantos do mundo. Hollywood, embora o maior, não é o único poder suave manifesto nas artes e no entretenimento. Outros exemplos foram vistos em diversos lugares. O British Invasion foi a onda da música britânica iniciada pelos Beatles em 1960, que não só desbancou todos os grandes artistas norte-americanos no topo da Billboard em grande parte daquela década, como também suavizou consideravelmente a imagem do poder duro da Inglaterra, suas invasões e domínios coloniais pelo mundo. Se hoje a família real britânica exerce nenhum hard power (poder duro) e seduz o mundo com poder suave – vestimentas, bebês e festas – na época do British Invasion seu poder duro era latente, época do processo de descolonização da África, Guerra Fria e conflitos econômicos entre os países do bloco europeu. A música britânica, no entanto, suavizou a imagem do país, criou modos de se vestir e de se comportar e abriu caminho para inúmeros produtos britânicos no mundo.
O poder suave não é medido só por força econômica. Países menos desenvolvidos, como o Brasil, são possuidores de importantes poderes suaves. Ballerini (2017) aponta três: o carnaval, a telenovela e a bossa nova. O carnaval, por exemplo, ao se transformar em produto que atinge grandes massas, como Hollywood, mas em proporção ainda bem menor, é um poder suave brasileiro, pois seduz interna e externamente e traz divisas tangíveis (turismo) e intangíveis (a maior festa do mundo, a alegria do brasileiro etc.) para o país. Este carnaval – Sapucaí, Anhembi e Barra-Ondina – é o que dá samba no mundo, que tem volume, disciplina industrial e cobertura midiática capaz de vender o país para nações bem distintas da nossa. Já a bossa nova não foi um movimento que acabou quando Vinícius de Moraes compôs Arrastão, com Edu Lobo, em 1965, como se pensou na época sobre o movimento que mal tinha uma década de vida. Ao contrário: mais de 2,5 bilhões de pessoas do planeta acompanharam a modelo Gisele Bündchen desfilar pelo Maracanã lotado ao som de Garota de Ipanema, cantada por Daniel Jobim, neto de Tom Jobim, na abertura dos Jogos Olímpicos do Rio, em 2016. A bossa nova ainda é gravada, recantada, comprada e berço de novos artistas nos EUA, no Japão, na Austrália e, claro, no Brasil. A telenovela brasileira, mais especificamente aquela produzida pela TV Globo desde os anos 1960, é outro grande poder suave, vendido a mais de cem países há décadas.
A novela A Escrava Isaura, por exemplo, foi vista por 450 milhões de chineses. A atriz uruguaia Natalia Oreiro é considerada uma das mulheres mais admiradas na Rússia e em Israel por conta de suas novelas. O maior mercado de rua que Luanda (Angola) já teve se chamava Roque Santeiro por conta do sucesso da novela brasileira no país. Paladar, o restaurante que Raquel (Regina Duarte) tinha na novela Vale Tudo virou também o nome dos pequenos restaurantes privados autorizados a funcionar após a abertura econômica de Cuba, nos anos 1990. Há relatos jornalísticos de que a primeira versão da novela Sinhá Moça (1986) interrompeu os conflitos bélicos na Bósnia, Croácia e Nicarágua (BALLERINI, 2017, p. 109).
Há décadas, portanto, a cultura é vista como instrumento de poder, porém nem sempre analisada sob um viés positivo e democrático. Nos anos 1940, estudiosos da Escola de Frankfurt como Theodor Adorno e Max Horkheimer criaram o conceito de indústria cultural, analisando a produção de bens culturais como um movimento global que transformou a cultura em mercadoria, fornecendo bens padronizados.
Diz Adorno: ‘O terreno em que a técnica adquire seu poder sobre a sociedade é o terreno dos que a dominam economicamente. A racionalidade técnica é o caráter coercitivo da sociedade alienada’ (MATTELART, 2004, p.78).
Conforme atesta McQuail (1983, p. 93), o pensamento marxista que guiou tais estudiosos da Escola de Frankfurt baseia-se na ideia de que os meios de comunicação são instrumentos de produção, que operam ideologicamente disseminando as visões de mundo das classes dominantes, negando ideias alternativas que possam conduzir a uma mudança ou conscientização da classe operária e seus interesses, impedindo, assim, uma mobilização ativa da mesma. Trata-se, no entanto, de uma afirmação perigosa, já que ela nega, por exemplo, o papel de algumas mídias como conscientizadoras e esclarecedoras dos direitos dos cidadãos. Os cineastas do Cinema Novo, por exemplo, usavam o cinema como meio de comunicação para disseminar novas ideias às classes média e baixa brasileiras, ideias de luta pela igualdade, combate à dominação cultural norte-americana etc. E a crítica de cinema reforçava tais pensamentos por meio de outros meios de comunicação – jornais e revistas – reafirmando as ideias vigentes entre os cineastas ao interpretar, esclarecer e iluminar seus filmes perante o público.
Aquela visão inicial frankfurtiana parece, portanto, ser reducionista quanto às formas de formação, interação e modificações da cultura e suas manifestações de poder. Alguns anos adiante, os Estudos Culturais britânicos, que também tiveram como uma de suas origens o pensamento marxista, aglutinou estudiosos mais alinhados a pensadores frankfurtianos como Walter Benjamin, que eram menos radicais que Adorno e Horkheimer. Stuart Hall (2016), por exemplo, via a cultura como uma construção, que influencia e é influenciada não apenas num único sentido – a cultura dominante sobre a cultura dominada, como pensava alguns frankfurtianos – mas em, pelo menos, uma via de mão dupla.
Não se está negando a existência de culturas dominantes nem culturas dominadas. A cultura norte-americana é dominante em grande parte graças ao poder suave de Hollywood. Mas os britânicos vão estudar subculturas, ditas dominadas, e perceber que elas também exercem influência sobre as culturas dominantes. Como aponta Hebdige (1979, apud MATTELART e NEVEU, 2004), as subculturas jovens – punks, mods, rastas, rockers, skinheads - foram alvo de diversas pesquisas acadêmicas por serem dinâmicas, inventivas, e longe de serem uma cultura dominada que absorvia passivamente o pensamento, os produtos e as ideologias de culturas dominantes. Estas subculturas eram influenciadas por outras culturas sim, mas também influenciaram as manifestações mais hegemônicas.
A ênfase é, ao contrário, posta sobre o modo pelo qual, sob pressão estrutural, os jovens desenvolvem táticas de seleção em seu potencial identitário. Os estudos de caso mostram ainda como essas subculturas são, a partir de sua cristalização no espaço público, instrumentos de mecanismo de provocação, de promoção ou de estigmatização pela publicidade, pela mídia, pelas autoridades. Tal abordagem se distancia das análises em termos de consumo passivo, de ‘americanização submissa’, dá atenção a uma possível parte criativa de escudo do consumo (S. Cohen, 1972; Hall e Jefferson, 1975; Hebdige 1979, 1988. Réseaux, 1996, apud MATTELART e NEVEU, 2004, p. 65).
Sob a ótica de que as subculturas também são instrumentos de poder e também exercem influência e alteram as culturas dominantes é que se escolheu o movimento punk como subcultura-tema deste artigo.
Movimento punk: aproximações conceituais
O ano de 1974 é considerado o nascimento do movimento punk, especificamente no clube Country Bluegrass and Blues em Nova York, onde os frequentadores apoiaram bandas que faziam frente ao estilo rock progressivo e ao movimento hippie, indo contra a filosofia da não violência e otimismo destes últimos. Ao contrário, este movimento underground preferia a subversão da ordem, da cultura vigente, com certo sarcasmo e a filosofia faça-você-mesmo (do it yourself). Estudiosos do movimento como Brian Cogan (The Encyclopedia of Punk, 2008), afirmam que o modo de vestir, usando jaquetas de couro, camisas brancas, jeans e cabelos moicanos coloridos e espetados, foi surgindo aos poucos naquela mesma década.
Mas foi quando desembarcou na Inglaterra, poucos meses depois, que o movimento foi além das músicas simples, de poucos acordes, e de uma vestimenta característica. O país vivia uma decadência social e econômica e um alto índice de desemprego que serviram de motores para a subcultura punk, especialmente em Londres. Bandas como Sex Pistols e The Clash ascendem ao gosto da juventude inglesa, mesclando símbolos nazistas com comunistas, com claras intenções de debochar dos valores vigentes e do rock and roll do British Invasion que levou a Inglaterra ao topo das paradas de sucesso nos EUA, nos anos 1960.
A partir do final dos anos 1970, a subcultura punk já havia influenciado jovens do mundo inteiro, sem nunca deixar de ser uma subcultura calcada no sarcasmo, na crítica social e desprezo pelas ideologias vigentes, com profundo tom pessimista.
Os principais adeptos eram os jovens filhos de operários das periferias de Londres e de algumas cidades da América do Norte que sob os governos Thatcher e Reagan viram suas expectativas de vida frustradas. O punk, ao invés de apresentar-se como continuidade com um suposto movimento de jovens anterior, se reporta a ele essencialmente como ruptura (...) Descrente dos valores do amor e da amizade e da esperança, dos quais se tornaram incrédulos pela própria força avassaladora do capitalismo na sua versão moderna neoconservadora, assumiam em revanche, uma atitude violenta e irreverente. (GALLO, 2010, p. 287).
O comportamento social parece ter sido a característica que sobressaiu do movimento punk, em tom maior que a música e a moda. Com uma certa aproximação ao anarquismo, embora seja considerado apolítico, os punks se opunham à religião, ao Estado e ao sistema como um todo.
No entanto, justamente por ter encontrado uma grande quantidade de jovens e adultos descontentes com a situação socioeconômica de seus respectivos países, a subcultura punk acabou, invariavelmente, crescendo, tornando-se também uma caricatura de si mesma e, como consequência, saindo das meras páginas de revistas e jornais e se tornando produtos culturais de massa, como filmes e músicas, por exemplo.
Caminhos metodológicos: a escolha dos filmes
Dentre todas as subculturas que foram alvo dos estudos culturais britânicos, o punk parece, portanto, ser o mais distante de uma possibilidade de interações e influências recíprocas com Hollywood, uma indústria cuja natureza é essencialmente conservadora e cautelosa, visto que sua essência comercial visa o lucro, e dificilmente admitiria radicalismos violentos contra o status quo, o que afastaria os espectadores. E como lembram Mattelart e Neveu (2004, p. 63), o punk é “caracterizado pela adoção de roupas, penteados e maquiagens agressivos e não convencionais, e pelo desafio às normas sociais de comportamento”.
Mas quando o número de adeptos a esta subcultura sobe em diversos países, os estúdios de Hollywood viram a oportunidade de uma aproximação. Os dois objetos de estudo deste artigo são os filmes Repo Man: a onda Punk, de Alex Cox e lançado pela Universal em 1984; e Suburbia, de Penelope Spheeris, lançado em 1983 e feito pelo lendário produtor de Filmes B dos Estados Unidos, Roger Corman.
A escolha destes dois filmes é proposital. O portal IMDb, consulta obrigatória de críticos e produtores cinematográficos, reúne não apenas uma das maiores bases de dados do cinema mundial, como também um ranking dos melhores filmes com base nas críticas de cinema que saem em jornais e revistas do mundo todo. Na pesquisa dos ‘Melhores filmes Punk de todos os tempos’ do portal, Suburbia figura em terceiro lugar e Repo Man está em sétimo lugar. Acima e entre eles estão todos filmes mais recentes – portanto com mais recursos tecnológicos e, quase sempre, mais recursos financeiros, dada a consolidação dos filmes anteriores – ou documentários. Já a revista norte-americana Rolling Stone, uma das mais importantes publicações no segmento da cultura de massa no mundo, juntou críticos de cinema e de música para elencar os “25 maiores filmes de punk rock de todos os tempos”. Na lista da revista, os dois primeiros lugares são dos documentários The decline of western civilization (1981), de Penelope Sheeris, e O lixo e a fúria (2000), de Julien Temple, seguidos pela primeira ficção – portanto a melhor ficção da lista – Suburbia e Repo Man, que é a segunda melhor ficção punk.
O procedimento metodológico adotado diante destes dois filmes é a análise de conteúdo qualitativa. Conforme Lindzey (1968, p. 317), “a análise de conteúdo é qualquer pesquisa técnica cuja finalidade consiste em fazer inferências através da identificação sistemática e objetiva de características especificadas no interior do texto”. Na vertente qualitativa, este procedimento metodológico não demanda obrigatoriamente a coleta de dados numéricos para mensurar o objeto, mas sim a obtenção de dados descritivos sobre situações, pessoas ou processos por meio do contato do pesquisador com o material estudado. A técnica deste método de pesquisa baseia-se em estudo descritivo e interpretativo de determinado fenômeno tal qual ele se manifesta no tempo e no espaço.
O cruzamento da lista do portal IMDb e da revista Rolling Stone elencou ambos os melhores filmes punks de todos os tempos que, curiosamente, foram feitos poucos anos depois da própria consolidação do movimento nos EUA e na Inglaterra. Isso quer dizer que os filmes são mais fidedignos às características do movimento? Ou o conservadorismo vigente na era Reagan/Thatcher desfigurou o punk nestes longas? De que forma a tão conservadora indústria de Hollywood se deixou contaminar por um movimento tão transgressor? Estas perguntas guiarão a análise de conteúdo dos filmes escolhidos.
Hollywood e o Punk: interações e influências
Suburbia foi dirigido por Penelope Sheeris, que dois anos antes havia feito o documentário sobre o punk, The decline of western civilization (1981). Quem abraçou a produção foi Roger Corman, o nome mais importante na produção de Filmes B (filmes de baixo orçamento) na história de Hollywood, que ajudou a alçar a carreira de nomes como Robert de Niro, Jack Nicholson, e os diretores Francis Ford Coppola, James Cameron, Tim Burton e Martin Scorsese. Com um orçamento de US$ 500 mil – considerado mediano para padrões de Filme B – a produção não divulga o faturamento, mas não deve ter sido baixo, visto que o filme correu, posteriormente, toda a cadeia das obras bem sucedidas de Hollywood: pay per view, TV por assinatura, DVD, blu-ray.
A diretora elencou para o filme membros da subcultura punk de Los Angeles, em vez de escalar apenas atores. Com participações ilustres como do baixista Flea, da banda Red Hot Chili Peppers, muitos dos incidentes mostrados no filme foram inspirados em eventos reais da cena punk da Califórnia, lidos pela diretora nos jornais e revistas locais.
A trama é conduzida pelos “Rejeitados”, como se auto intitulam os garotos e garotas que abandonam ou são expulsos de casa e vão viver juntos numa casa abandonada no subúrbio de Los Angeles. Para sobreviverem, pedem dinheiro nas ruas e roubam. As atuações do filme são quase sempre sofríveis – a diretora usou, além de não atores, atores com pouca experiencia – e os diálogos quase sempre caricatos, nos quais se fala muito daquilo que se deveria mostrar por imagem – a natureza do cinema – algo típico dos filmes de baixo orçamento. Mas o roteiro tem particularidades interessantes. O filme começa com uma violenta morte de uma criança por um cachorro e termina com outra criança sendo morta, só que atropelada por dois homens. Estes homens fazem parte da comunidade da cidade, que se reúne numa escola para dar um jeito nestes “delinquentes”, como veem os punks. O ethos (moral da história) é, deveras, sofisticado: homens do bem, conservadores e de família, também são capazes de atrocidades brutais como os animais, contra aqueles que eles mesmos chamam de animais, os punks.
Os punks em Suburbia – cujo nome é amálgama de subúrbio e utopia – não são apenas jovens revoltados contra o sistema. São altamente violentos. A banda punk só para de tocar quando a violência atinge o ponto de uma garota ter sua roupa completamente arrancada por outros homens. “Esse tipo de violência não é nosso”, diz o vocalista. E tampouco é o tipo de violência comum nos filmes de Hollywood, que em geral se limitam a tiroteios sangrentos, e não a cenas de violência de cunho sexual que deixa uma garota nua frontalmente para a câmera. A subcultura punk, tida como violenta e transgressora, aqui influenciou diretamente os limites conservadores de Hollywood na época.
Mas a anarquia e o caos não entram na condução da trama. Assistimos ao filme dentro da mais convencional narrativa clássica. A história é conduzida pelo garoto certinho que se revolta com os pais e leva até o irmão pequeno – o que vai ser atropelado – para aquela casa, virando, ambos, gradualmente, membros da subcultura punk. Os rejeitados detestam policiais, ridicularizam os hippies, e propagandas de TV são constantemente colocadas nas cenas como elementos de deboche da vida convencional.
Mas o que mais salta aos olhos é como o filme constrói uma imagem absolutamente violenta dos punks. Todos os shows no filme mostram pessoas brigando, que depois vão assaltar lojas e até matar. “Estes adolescentes punks estão agindo como bárbaros”, diz o padre na reunião da comunidade. “Eles não querem formar família porque são a prova de que família não funciona”, diz um policial, pai de um dos garotos punks que fugiu de casa. A imagem de extrema violência desta subcultura é consolidada no clímax: quando uma das garotas, Sheila, morre de overdose. Os amigos punks vão ao funeral dela, são expulsos pela família, mas, antes, atacam violentamente o pai dela, que a molestava sexualmente antes de ela fugir de casa. Tudo ao som de música punk, encerrando, de noite, com a morte da criança na casa que eles chamavam de lar.
Lançado um ano depois e por um grande estúdio, a Universal, Repo Man: a onda punk é muito menos sofisticado, ainda que tenha um orçamento três vezes maior e tenha faturado US$ 4 milhões só nos cinemas. Alex Cox, o diretor, é inglês, tem uma ligação pessoal com o movimento punk de seu país, tendo feito depois outro filme com a mesma temática, Sid & Nancy: o amor mata (1986), considerado o melhor filme punk do IMDb e o oitavo melhor pela lista da Rolling Stone.
O sarcasmo contra o sistema vem não apenas dos roubos e pichações em toda a cidade, mas também de efeitos especiais bregas, como um porta-malas que pulveriza humanos e um carro neon que voa pela cidade. Os personagens, que constantemente cheiram cocaína, dizem odiar pessoas comuns.
Neste filme, porém, Hollywood se impõe mais sobre a subcultura punk: o protagonista não é nada subversivo visualmente. Otto (Emilio Estevez) é jovem, loiro, branco, e anda de terno o tempo todo. Foi também rejeitado pela família e passa a trabalhar numa empresa de roubo de carros. Sempre sob trilha musical punk, a história é conduzida por micro sequencias de ações banais – roubos, pichações – que vão fortalecendo o estereótipo punk, ambientado no subúrbio de Los Angeles, entre drogados, mexicanos e negros. “Não quero comunistas no meu carro, nem cristãos”, diz o parceiro de roubos de Otto. Quando os “verdadeiros” punks aparecem no filme –com jaqueta de couro, camisa branca e moicano – eles estão sempre roubando os outros.
Mesmo com uma trama risível e bastante cafona, Repo Man: a onda punk mostra claramente o poder suave de Hollywood, poder este que independe da qualidade do conteúdo em questão. O filme foi uma das primeiras aparições de bandas punk como Black Flag e Suicidal Tendencies. Alçou à fama ambas e ajudou a internacionalizar outras duas, formadas no começo do movimento punk: Fear e Circle Jerks.
Troca de poderes e novas configurações culturais
Pode-se até dizer que Hollywood é a maior indústria cultural do mundo, para utilizar um termo frankfurtiano. Mas não se trata de uma indústria de sabonetes ou cadeiras. A indústria cultural é, hoje, chamada de economia criativa porque ela necessita constantemente apresentar o novo para continuar sendo consumida. Afinal, nem mesmo o mais fanático fã passaria todas as semanas de sua vida assistindo ao mesmo filme, ouvindo a mesma música, lendo o mesmo livro. É preciso inovação, mesmo que esta seja apenas uma sutil repetição de padrões.
No caso de Hollywood, porém, o novo precisa vir com muita cautela. Pois trata-se de uma indústria que emprega milhares de pessoas e seus filmes – quase sempre com orçamentos na ordem dos milhões de dólares – são objetos de altas expetativas de retorno de bilheteria. Por isso, dificilmente se arriscam em cenas, imagens e ações que afastariam uma parcela grande da população de suas bilheterias. Alguém já viu Hollywood gastar milhões de dólares com uma ficção protagonizada por inuítes, os esquimós do norte do Canadá? Quantas pessoas iriam assisti-los nos cinemas?
Quando o movimento punk persistiu nos noticiários de revistas, jornais e TV e começou a tornar conhecidas suas primeiras bandas, o sinal verde foi aceso para o contato deste que é o maior poder suave do mundo com uma subcultura urbana. Mas ao contrario do esquema cultura-dominante-influencia-cultura-dominada dos primeiros frankfurtianos, estes filmes analisados mostraram que a troca de influências se dá por duas vias, como já atestavam os estudos culturais. Sempre há uma relação de dominação e resistência, mas se os punks nasceram como resistência ao status quo vigente em sua época, suas bandas acabaram por aderir ao sistema, ao fazer parte de produtos do maior poder suave do mundo: Hollywood.
Por sua vez, Hollywood não passou ilesa de influências. Numa década marcada por forte conservadorismo político e social, produtores como Roger Corman e estúdios como a Universal se abriram para ousadas cenas em seus filmes, com nus frontais e crianças sendo assassinadas brutalmente, além de altíssimas doses de consumo de drogas e violência física. Isso sem falar de uma trilha musical genuinamente punk, com letras, melodias e performances muito distantes do conservadorismo da era Thatcher/Reagan.
Hebidge (1988, apud apud MATTELART e NEVEU, 2004, p. 35) afirma que as subculturas são, ao mesmo tempo, “uma declaração de independência, de alteridade, de intenção de mudança, de uma recusa ao anonimato e a um estatuto subordinado. É uma insubordinação”. Mas como se pode ver, as duas ficções no topo da lista das melhores do universo punk no cinema foram produções de dentro do sistema. Não são independentes, subordinam-se às rígidas regras de produção que levou Hollywood a ser o mais influente poder suave do mundo. Ao mesmo tempo, porém, aceitam entrar no sistema pela “recusa ao anonimato”, por querer mostrar a alteridade e, porque não, usar a via de um poder suave consolidado para provocar mudanças sociais.
Haja vista a natureza do poder suave de Hollywood de quase sempre trabalhar com estereótipos para facilitar sua compreensão em larga escala, é provável que estes filmes tenham ajudado a construir uma imagem altamente violenta da subcultura punk. Porém, ao mesmo tempo, é graças à força do poder suave hollywoodiano que estes mesmos filmes foram capazes de entrar em casas nos confins do mundo que esta subcultura jamais seria capaz de alcançar. A música e a moda punk tão exploradas nestes longas-metragens certamente difundiram não só produtos, mas suas próprias ideias e subversões, ainda que esta não tenha sito a intenção inicial dos estúdios.
Neste e nos outros filmes que vieram nos anos seguintes, o universo punk pode ter até se tornado um grande estereótipo nas mãos dos produtores e diretores. Mas numa outra via, é possível também concluir que os ideais e contravenções da subcultura punk tenham talvez ganhado potência e sobrevida ao longo das décadas também graças a esta aproximação e influência mútua com o cinema hollywoodiano. Contra todas as engessadas conjecturas frankfurtianas, de dominantes e dominados, é possível dizer, portanto, que Hollywood é, também, punk.
Referências
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[1] Franthiesco Ballerini é doutorando em Comunicação Midiática, Processos e Práticas Socioculturais’ pela Universidade Metodista de São Paulo, contemplado com Bolsa Prosuc/Capes para projetos Interdisciplinares/Multidisciplinares. Foi finalista do Prêmio Jabuti na categoria Escrita Criativa pelo livro ‘Poder Suave – Soft Power’. Contato: franthiesco@yahoo.com.br
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