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Uma poética da tradução para Platão

Uma poética da tradução para Platão


Por André Malta


- O título da minha fala é meio pomposo e pretensioso, “Uma POÉTICA da Tradução para Platão”. Na verdade, só vou propor algumas reflexões e alguns critérios associados à minha atividade tradutória.

- Se existe uma “poética”, com “p” minúsculo, no meu modo de verter Platão e o gênero chamado diálogo socrático, ela tem a ver com um conjunto de escolhas variadas, que vão além do que eu vou expor aqui. E que vão além também da mera eleição consciente.

- Toda tradutora, todo tradutor, são produtos de bagagens literárias sinuosas. É essa mesma bagagem básica e inescapável que levamos para cada diferente obra.

- O trabalho de tradução de Platão integra meu projeto atual de pesquisa. Depois de ter publicado a tradução de 5 obras platônicas nos anos de 2007-2008, eu estou envolvido agora na tradução de outras 4 obras.

- É dessa experiência de um contato mais demorado com a prosa do Platão, que teve início há quase 15 anos, que eu quero falar aqui. Um mestre na periferia do helenismo já disse: “Platão é uma cachaça”. E eu que sempre achei que não gostava de cachaça.

- Vou começar citando alguns apontamentos da Lydia Davis, a contista estado-unidense que produziu importantes versões do francês. A tradução dela de Madame Bovary, de Flaubert, em especial, é um acontecimento literário em inglês. Ela acolhe a diferença.

- Tradutoras e tradutores para o inglês e para o francês em geral detestam a diferença.

- Eu tirei esses apontamentos de um artigo da Lydia para a revista Paris Review, edição do outono de 2011. O título do artigo é: “Some Notes on Translation and on Madame Bovary”.

- Primeiro apontamento: “Um grande livro é potente o bastante para conseguir brilhar mesmo que através de uma tradução pouco adequada”.

- Acho esse apontamento tão desconcertante quanto verdadeiro, e sem dúvida ele é super pertinente e válido também para os grandes livros de Platão.

- Segundo apontamento: “A menos que comparemos com o original, não sabemos o que estamos perdendo”.

- Eu acrescentaria: e o que estamos ganhando.

- O que sinto quando leio a grande maioria das traduções de Platão, para o português, para o inglês, para o francês: ganhamos pouco e perdemos muito. Sua prosa filosófico-literária vira só prosa filosófica.

- As traduções se repetem e se retraduzem, perpetuando as perdas, pasteurizando as soluções. Platão, o Insosso. Mas ainda Platão.

- Daria para ilustrar esse processo com uma metáfora culinária. O que tradutores e tradutoras fazem em geral é uma “redução” de Platão: deixam evaporar o dado literário para ficar só com a mensagem filosófica.

- Mas com isso a gente perde temperos que são essenciais para os seus sabores finais. Meu objetivo é recriar os sabores de Platão.

- Alguns dos critérios que eu adoto: evito a sisudez e a elevação uniformes, usando, por exemplo, você/vocês em vez de tu/vós, e formas desenvolvidas, com gerúndios, para os tempos do presente e do imperfeito: “eles estão falando”, “eu estava dizendo”.

- Em Platão, os interlocutores usam muito a coloquialidade, mesmo que ela seja uma coloquialidade artificial – a minha também é.

- Outro critério adotado: busco variações estilísticas mais ou menos correspondentes às do original, que quebrem a monotonia da dicção supostamente uniforme. Isso é interpretação. Isso é tradução.

- Mais um critério: tento recriar jogos de palavras e preservar as repetições mais significativas. São elementos que dão um colorido especial a qualquer texto.

- Também exploro a vivacidade e a teatralidade das conversas por meio da pontuação, dos dêiticos e dos expletivos. Gosto ainda de recorrer a recursos gráficos como o itálico, o travessão, as aspas e os parênteses.

- Retomando o João Angelo Oliva: os livros de tradução do Augusto de Campos são, para mim, literatura em língua portuguesa em pé de igualdade com outros livros de poesia que não são de tradução.

- Foi o Augusto que disse o seguinte, na abertura do seu livro Verso Reverso Controverso, onde ele imaginava o tradutor como um heterônimo do autor: “...entrar dentro da pele do fingidor para refingir tudo de novo, dor por dor, som por som, cor por cor”.

- Platão tem dor, som e cor, e temos que refingi-los.

- Um exemplo do meu método, a abertura da Apologia, cuja tradução publiquei em 2008:

“O que vocês, varões atenienses, sentiram com os meus acusadores, não sei; mas até eu mesmo, com eles, por pouco não me esqueci de mim, tão convincentemente falavam! Porém, de verdadeiro, a bem dizer, nada disseram! E das muitas mentiras que disseram, fiquei mais espantado com uma – esta: quando falaram que vocês deviam tomar cuidado para não serem enganados por mim, porque eu seria hábil em falar! Não terem vergonha de imediatamente serem refutados por mim com fatos (quando não me mostrar nem de uma maneira nem de outra hábil em falar) – isso me pareceu a coisa mais desavergonhada da parte deles. A não ser que chamem de “hábil em falar” aquele que fala a verdade: pois se é disso que estão falando, então eu reconheceria ser – não à maneira deles – um orador... Esses, então, como eu estava dizendo, quase nada de verdadeiro disseram. Mas de mim vocês vão ouvir toda a verdade – porém não, varões atenienses, por Zeus, discursos ‘beletrificados’, como os deles (...)”.

- “Varões atenienses”, ô ándres Athenaîoi: sim, “varões”, para a gente não esquecer que esse era um mundo androcêntrico, controlado por machos adultos.  

- O John Burnet, no seu comentário à Apologia, diz que toda essa abertura deve ser lida cum grano salis, “com um grão de sal”.

- Reparem no “beletrificados” do final, entre aspas: “discursos ‘beletrificados’”. É um neologismo que criei para o particípio kekalliepeménous, do verbo kalliepéomai. Jaime Bruna, em sua tradução da Apologia, usou “em estilo florido”.

- Talvez esse verbo kalliepéomai esteja sendo empregado numa alusão ao jargão retórico. Talvez. Não é certeza.

- A certeza: toda essa abertura e a Apologia toda são bastante retóricas, com vários lugares-comuns. Sócrates está ironizando: ele se vale do pedantismo, de construções elaboradas, para se dizer um homem simples, de linguagem simplória.

- A partir desse exemplo, eu levaria muito além o que o John Burnet disse lá no seu comentário. Eu diria que os grãos de sal estão por toda parte em Platão, de muitas maneiras. E, enquanto tradutor, eles me interessam tanto quanto a sua filosofia.

- É isso que eu tinha para dizer. Obrigado.

André Malta, professor de língua e literatura grega da FFLCH-USP desde 2001, é autor de A selvagem perdição: erro e ruína na Ilíada (2006), Homero múltiplo: ensaios sobre a épica grega (2012) e A Musa difusa: visões da oralidade nos poemas homéricas (2015). Traduziu de Homero, em versos, quatro cantos da Ilíada (1, 9, 16 e 24).

 

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