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Só começa quando acaba: retrato de um Ulysses traduzido

Caetano Galindo

 

 

 

Tudo começou mais ou menos em agosto de 2002. Não.

 

Tudo começou lá por 2000. Não. Também não.

 

Tudo começou em 1997. Pode ser por aqui.

 

 

A minha filha ia nascer em dezembro. Não sei bem qual a ligação, mas na minha cabeça fez sentido esperar por ela lendo finalmente o Ulysses. Ou tentando, porque obviamente não deu certo. Com o nascimento dela, tudo quanto era rotina foi por água abaixo, claro, e o livro ficou de lado.

 

Mas, se o canto de sereia já existia antes (de ouvir meu pai mencionar o livro mais difícil do mundo... Tudo começou em 1989?), ele agora virou pulga atrás da orelha. Incômodo.

 

Aí foi em 2001 que Luís Bueno, meu colega-barra-irmão-adotivo na Federal do Paraná, decidiu que ia dar uma disciplina sobre o livro na graduação. Foi um semestre épico. De lá para cá, eu já dei uma meia dúzia de disciplinas sobre o Ulysses, na graduação e na pós, mas aquela, do Luís, é que é o “mito”. E foi nesse embalo que eu me embalei, e decidi retomar aquela leitura.

 

Mas como a coisa toda passou de mera leitura de um romance a projeto de uma década de vida já é estória que precisa de outra estória.

 

Porque a questão é que, defendido o meu mestrado em 2000, eu estava em fase de pensar em projetos de doutorado. E tinha achado: uma análise do vocabulário do Tetraevanghelul Coresi, versão romena dos evangelhos, um dos primeiros documentos daquela língua.[i]

 

Para esse trabalho tinha até um potencial orientador, na Ludwig-Maximilians-Universität, de Munique, e eu já havia sido, inclusive, escolhido como bolsista integral para o programa deles. Quatro anos na Alemanha estudando romeno antigo. Acredite, parecia uma boa ideia.

 

Mas aí (tudo começou em 1999), eu tinha me separado da mãe da minha filha, e a ideia de deixar a Beatriz aqui durante quatro anos me fez desistir daquilo tudo e tentar montar um projeto de doutorado local.

 

Se um dos motivos da existência daquele dia 16 de junho, daquele Bloomsday original, é o fato de Leopold Bloom estar separado da filha, de certa forma eu não ter me separado da minha naquele momento é a razão de o meu bloomsday ter chegado.

 

Para começo de conversa, seria bem difícil achar aqui no Brasil quem orientasse aquilo. Eu ia precisar mudar de projeto. E, num momento algo hedonista e muito mais sério do que podia imaginar, eu decidi, caminhando pelo Jardim Botânico de Curitiba, que ia traduzir o Ulysses e que ia transformar essa tradução no meu projeto de doutoramento. Lembro nitidamente de a frase aparecer como que entre aspas na minha cabeça: “Eu vou traduzir o Ulysses”.

 

E uma frase que forma na cabeça de um caminhante-a-esmo é, afinal, a descrição de mais da metade do Ulysses.

 

Mas por que traduzir?

 

E por que dentro da Academia?

 

Não bastava ler o livro de uma vez? (Isso deve ser atípico. Eu só fui ler o Ulysses inteiro depois de decidir traduzi-lo).

 

O problema é que todos os contatos prévios (1997 foi só o mais longo) e tudo que eu já tinha lido sobre o romance me deixavam com a nítida sensação (sou um leitor muito rápido, ligeiro, superficial) de que se tratava, claro, de um grande livro, mas também de um livro que eu não seria capaz de ler adequadamente enquanto caminhava pela rua, andava de ônibus ou subia e descia escadas (que é como você lê ficção quando não tem tempo de ler ficção). Eu ia precisar de um projeto pessoal. Leituras de apoio, releituras, notas.

 

E eu não sei ler assim. Não é pra mim. Eu não sou esse leitor.

 

Mas traduzir o livro poderia me forçar a ser. É uma das poucas coisas que a tradução obrigatoriamente te força a fazer. Ser aquele leitor. Não deixar nada passar. Prestar atenção.

 

E colocar esse projeto dentro de um “projeto” acadêmico seria a forma definitiva de me enquadrar, de eliminar meu lado leviano e gerar a leitura mais profunda que eu pudesse conceber. E que seria necessária.

 

E traduzir o Ulysses acabava de virar meu projeto de doutorado. A tradução do livro como meio para entender os mecanismos de relações entre as vozes de narradores e personagens naquele 16 de junho de 1904 (foi esse, afinal, o tema escolhido). Seria uma análise detida do texto, com base numa teoria bakhtiniana de linguagem e romance, que só poderia se realizar com plena potencialidade depois daquele desmonte, daquele processo de análise no sentido etimológico, de separar em partes, de isolar os constituintes, de quebrar o romance e, mais ainda, na empresa de tradução, fazer o teste final de tornassol, que é apresentar um texto novo que pretenda fazer as mesmas coisas que o original faz. Fazia.

 

Entre esse momento e o segundo semestre de 2002 (tudo começou em 2002), quando entrei no programa de doutorado da USP, ainda veio um certo tempo entre esperar uma nova janela de afastamento no meu departamento (a minha indecisão tinha me tirado da fila) e, mais complicado, encontrar alguém que aceitasse considerar que aquilo (traduzir o livro, ler a bibliografia e produzir a análise final) era exequível em quatro anos, que eu não era um doido megalômano e tal.

 

Eu tinha 29 anos em 2002. Era mais velho que Dedalus, mas, como ele, estava procurando, sem saber, um mentor que pudesse me pôr em ordem. Ele achou. Eu achei. Acho que eu sei disso. E ele, não sei...

 

As recusas não foram poucas e pelos motivos mais variados. Quando já estava achando que teria que desistir, aparece em cena o professor José Luiz Fiorin, que eu conhecia desde os tempos do meu mestrado (eu, na época, propus a ele um outro trabalho sobre morfologia do romeno, interesse comum nosso, que acabei fazendo em casa, em Curitiba, com o professor Carlos Alberto Faraco, mas com ele na banca da defesa), que se oferece para orientar a tese, no programa de Linguística, com total abertura e não pouca coragem. E não poucos riscos...

 

Viu?

 

Então é assim.

 

Às vezes os livros são traduzidos porque uma editora compra os direitos, contrata uma pessoa e pronto. Às vezes são veleidades, vontades pessoais.

 

Às vezes é bem mais complicado.

 

 

II 

 

 

E começou o trabalho. E comecei a ter trabalho.

 

(Mais uma bifurcação? Agora abandono um pouco a estória do lado acadêmico daquela tese; o objetivo deste texto é a tradução do Ulysses).

 

A primeira página do livro, eu comecei a traduzir no banco de um ônibus Curitiba-São Paulo, às seis e pouco da manhã. É assim que você cumpre créditos de doutorado na USP quando ainda está dando aula em Curitiba. Sai às seis, chega lá uma e pouco, assiste a aula, sai às cinco, mais ou menos, meia-noite está em casa.

 

Eu, o Ulysses e um dicionariozinho de bolso. E muita vontade de dar a devida atenção àquelas palavras de pórtico. Passei bem mais de uma hora, naquele dia, só no primeiro parágrafo, que depois revisei quase continuamente por dez anos.

 

Um périplo. Um retorno. Nostos. Foi adequado traduzir o Ulysses em trânsito. Assim como acabou sendo adequado terminar a minha tradução com um “Curitiba – São Paulo (Dublin, Zurique, Paris) – Rio de Janeiro”, que espelhava o “Trieste – Zurique – Paris”, de Joyce.

 

Mas é claro que isso não é ritmo de trabalho.

 

Naquele primeiro semestre, traduzi pouco, pois só fui me afastar das aulas (santa bondade dos colegas que bancaram esse afastamento!) depois do fim daquele semestre.

 

Não mantive um diário de tradução (eu sou leviano. Tudo começou em 1973), mas lembro de a tradução ter andado pouco entre agosto e novembro. A única lembrança clara é que comecei a ler intensamente a crítica sobre o Ulysses (praticamente tudo que está na bibliografia da tese foi sendo lido enquanto eu traduzia) e que terminei a tradução do trecho de “Nestor” em que Dedalus conversa com seu aluno, Sargent.

 

Foi a única vez em que eu pulei a ordem e traduzi um trecho só por vontade.

 

Foi para entregar a versão finalizada no dia 15 de outubro de 2002, como presente de Dia dos Professores para a Sandra, que, em janeiro de 2003, já era, e continua sendo, minha mulher.

 

E esteve longe de ser a única vez em que foi ela o motivo do meu trabalho.

 

Fora isso, guardo (eu sou leviano) a clara memória de uma breve sensação de vitória por ter traduzido dateshaped como atamarada. Mesquinhos triunfos.

 

A partir de novembro, a coisa se intensificou.

 

Entre dezembro (fim das aulas) de 2002 e junho de 2004 (mais sobre isso daqui a pouco), eu produzi toda a primeira versão da tradução do Ulysses. Traduzindo todo dia, dias inteiros, deixando para ler a bibliografia teórica de noite, quando as mãos não aguentavam mais digitar.

 

(Tudo começou em 1992, quando uma lesão por esforço repetitivo me tirou do conservatório e da carreira de músico?)

 

Foi o meu período de corte, em que eu aprendi a ler o Ulysses, aprendi o Ulysses, a escrever o Ulysses.

 

Hoje, se eu olho o texto daquele momento, ele me constrange um pouco. O texto final, o texto de 2012, é, nitidamente, é inquestionavelmente superior àquele.

 

E isso porque além do fato de eu obrigatoriamente (por mais leviano e tal) ter melhorado um pouquinho como leitor e tradutor nesses anos, algo de pragmático e direto mudou. Eu realmente virei tradutor.

 

E ainda não era, naquele dia 16 de junho de 2004, quando, depois de ter deixado o trabalho parado por uns dois dias, só pelo ritual, pus o ponto final na tradução do Ulysses, cem anos depois das andanças de Bloom pelo mundo.

 

Mas, se eu cheguei mais perto de ser, é ainda outra estorinha paralela.

 

A estória, afinal, de um projeto desse tamanho, é necessariamente a estória de várias pessoas. A Sandra, a Bia, meus orientadores, o Luís, todos precisam necessariamente estar neste texto. Outro é o Cristovão.

 

Tezza, que é meu vizinho desde que eu moro com a Sandra, foi meu colega de sala até sair da universidade, leitor de primeira hora das primeiras versões já dos primeiros episódios do Ulysses (ele foi lendo em folhetim!) e incentivador da ideia de que eu deveria traduzir mais. E foi por contatos dele, e do Luís, que eu comecei a fazer tradução, de literatura e não, para editoras universitárias e comerciais.

 

Pra te encurtar a estória, como se diz por aqui, quando eu estava sentado naquele ônibus mexendo naquela primeira frase, nunca tinha publicado um livro traduzido. Poemas, sim. Coisas maiores na gaveta (uma peça que curiosamente só foi publicada em 2011, por exemplo). Mas nada sério. Constante. Já em 2012, dez anos depois, no final do projeto Ulysses, eu já traduzi uns 15 livros diferentes, de tudo quanto é gênero.

 

E isso, minha amiga, faz diferença. Pacas.

 

Por mais que eu já estivesse de posse dos apoios bibliográficos mais relevantes para a tradução; por mais que eu já tenha me disposto a fazer algo detido, detalhado e ao mesmo tempo mais colorido, inventivo e divertido (talvez acima de tudo mais divertido) que as traduções que já existiam em português; por mais que a tradução de um episódio como o Gado do Sol, com suas dezenas de pastiches dos diferentes estilos que formam a história da língua portuguesa, tenha gerado um verdadeiro projeto literário paralelo aqui em casa, com os dois professores debruçados sobre uma lista de estilos e uma pilha de livros para montar a série de modelos da história da literatura portuguesa que depois eu iria lendo e consultando, enquanto traduzia os pastiches de Joyce;[ii] por mais que, para escrever “Eumeu” em português, eu tenha passado horas anotando expressões divertidas que lembrava de ouvir na infância; por mais que eu tenha lido e relido todo o monólogo de Molly, no original e na minha versão, em voz alta para ver se saía oral; por mais que o meu comprometimento com certos comentários de Joyce e com o que eu julgava serem posturas inamovíveis do Ulysses (e existe isso? Hoje eu me pergunto) tivesse me levado a rever todo aquele monólogo só para deletar todos os acentos e cedilhas (eles acabaram voltando... oito anos depois); por mais que eu tenha feito o melhor que julgava ser possível àquela altura, hoje eu não posso deixar de admitir que aquele meu Ulysses 2004 tinha bastantes problemas.

 

Joyce terminou o Ulysses em 1921, mas o processo de revisão que se iniciou aí e terminou praticamente às vésperas da publicação, no dia 2 de fevereiro, aniversário de 40 anos do autor (tudo começou em 1882), fez com que o livro quase dobrasse de tamanho.

 

Aquele texto ainda foi revisado uma vez. No final do meu último semestre de doutoramento, depois que eu já tinha terminado a redação das quatrocentas páginas que seriam a parte teórica da tese,[iii] ainda sobrou tempo para uma relida final, que uniformizou muita coisa e fechou o que seria o Ulysses 2006, que está ainda disponível como parte da tese, para quem quiser ver.

 

 

III 

 

 

A ideia, claro, desde 2002, era publicar essa tradução assim que passasse a defesa. Mas houve um pequeno problema.

 

Que se apresentou na forma de um telefonema, de Heitor Ferraz, um amigo editor, para quem eu estava fazendo um romance na época, me informando que uma nova tradução brasileira do Ulysses, feita pela professora Bernardina Pinheiro da Silveira, estava perto de ser publicada.

 

Hoje, eu já li a tradução da professora Bernardina com os meus alunos da graduação, já conversei com ela mais de uma vez. Tenho até a pretensão de dizer que a considero uma amiga.

 

Na época, eu não a conhecia. E só me ficou o choque. A rasteira. Que não teve outro remédio senão virar resignação bem rapidinho. E o meu Ulysses foi para a gaveta. Ninguém, eu calculei, teria qualquer interesse em publicar mais um Ulysses assim, em cima do segundo brasileiro, ainda mais depois do sucesso, merecido, que foi a acolhida da bela edição que surgiu em 2005.

 

Essa notícia e outro fator se combinaram para gerar o período de marinada do meu Ulysses, que, entre 2007 e 2009, foi revisado apenas aos pedaços, cada vez que me solicitavam um trecho para uma leitura, uma publicação restrita etc.

 

O outro fator é algo bastante comum no mundinho dos estudos joycianos. Depois de terminar um longo período dedicado ao Ulysses, os meus interesses se voltaram ao Finnegans Wake, e naqueles três anos eu li muito mais o Wake, embora tenha continuado ensinando Ulysses e lendo sobre ele.

 

Até que, por caminhos ainda mais tortuosos (tudo começou em 2008), eu me vi em São Paulo para participar do Congresso Internacional da Associação Brasileira de Literatura Comparada, onde, diga-se de passagem, estava apresentando mais um trabalho sobre Finnegans Wake,[iv] e aproveitei para passar na casa do editor da Companhia das Letras que tinha me convidado para traduzir, para eles, as memórias de um compositor americano que sofre de um número incrível de fobias. Conhecer o André Conti foi o penúltimo passo necessário.

 

Eu não escreveria coisa assim antes de ter passado por esses anos de Ulysses. Acharia sentimental e vão. Mas hoje escrevo. Eu hoje sei. O Ulysses é acima de tudo um livro sobre encontros, desencontros, pessoas solitárias que lidam com essa solidão incontornável. A gente precisa encontrar os outros. Ainda que esteja sempre, na verdade, encontrando a si próprio, como diz, e repete, o Ulysses.

 

Já naquela breve passada pela casa dele, a gente descobriu que tinha pilhas de interesses em comum, leituras em comum, que o mestrado dele era sobre um autor que eu adorava, que as nossas bibliotecas eram quase irmãs, que a gente era louco por um mesmo romancista contemporâneo e que os nossos sensos de humor batiam de um jeito até incômodo. Pros outros.

 

Saiu o livro do compositor polifóbico, outros vieram, e nas nossas conversas ia surgindo a noção de apresentar um projeto Ulysses para a editora.

 

Bom, se você ainda não sacou que eu sou um sujeito consideravelmente afortunado, acompanha só agora.

 

Porque havia ainda um problema, grande, na questão dos direitos autorais, detidos no Brasil pela Objetiva/Alfaguara, que publicou o Ulysses da professora Bernardina, e geridos no mundo pelo neto de Joyce, o senhor Stephen James Joyce, que já vinha acumulando um histórico complicado com editores de todo o planeta.[v]

 

 

Em 2012, mesmo as convenções mais conservadoras de direitos autorais (como a nossa. Surpresa...) reconheceriam a entrada de toda a obra de Joyce no domínio público.

 

E problema resolvido.

 

O que restava ainda era convencer a Companhia das Letras a lançar um terceiro Ulysses meros sete anos depois do segundo, sem qualquer garantia de vendas mirabolantes. Um livro, ademais (sempre quis escrever “ademais”), que ia ser, claro, caro, grande, trabalhoso, custoso.

 

 

Em 2009, veio o acordo Penguin-Companhia das Letras (que acabou redundando na aquisição de parte da editora brasileira pelo conglomerado internacional, em 2011), que gerou todo tipo de facilidades e interesse pelo catálogo dos clássicos Penguin, seu modelo de edição e seu aparato crítico. O eventual “problema” praticamente se dissolve e vira “atrativo”.

 

E, em 2011, pudemos soltar a notícia.

 

O novo Ulysses era da Companhia das Letras.

 

Isso contudo implicava a necessidade de “fechar” o texto. De voltar a ele, relê-lo todo, cotejando com o original, retraduzindo o que fosse necessário, revendo tudo, de decisões de grande impacto quantitativo (Rua Eccles ou Eccles Street?) a casos pontuais, singulares.

 

Era agora a hora de fazer todos aqueles anos de “evolução” (muita ênfase nessas aspas aí) como tradutor se refletirem em um novo texto do Ulysses.

 

Como que para fechar a sina dessa tradução, de ficar entre os mundos editorial e acadêmico (que foi, inclusive, onde ela me deixou até hoje), estava na hora de eu propor um pós-doutorado. Que era para rolar na França e que, de novo, deu errado. Mas deu tão gloriosa e satisfatoriamente errado que nem vale a pena mencionar.

 

Joyce errou muito escrevendo o Ulysses. Mas foi em Paris que achou a paz e o apoio necessários. Nesse sentido, a Gávea foi a minha Paris.

 

Porque, de novo, eu me vi tendo que mendigar orientação. E de novo um colega boa-praça, que eu conhecia pouco ainda, encarou o problema. E fui trabalhar no Rio de Janeiro, com o melhor tradutor do Brasil e um dos maiores teóricos de tradução da Academia brasileira (além de ser o nosso melhor poeta e tal...), Paulo Henriques Britto, que foi o degrauzinho que faltava.

 

Para começar, porque ele já era leitor do Ulysses de longa data.

 

O processo de me reunir com ele (na casa dele, na PUC, ou via Skype), durante cerca de quatro meses, foi a minha maior experiência como tradutor. Virou do avesso a minha “capacidade”. Mudou metade das minhas opiniões.

 

E, claro, mexeu muito no que viria a ser o Ulysses 2010, todo relido por mim em cotejo constante com o original, comentado minuciosamente por ele, e renegociado em detalhe, caso a caso, episódio a episódio, em discussões conjuntas.

 

Depois de lido, traduzido e revisado, só durante 2010 o livro passou, então, por mais três leituras. (E, antes de se ver entre capas, passou pelo André, de novo por mim, e por duas revisões).

 

Mas depois disso ainda me cabia reler todo o livro, num processo semelhante ao de 2006, considerando que o trabalho grosso estava feito, que se tratava de uma oportunidade de aparar arestas (e a própria percepção dessas arestas só é possível numa leitura corrida, mais próxima de ininterrupta, que foi o que consegui fazer no final do primeiro semestre, começo do segundo do ano seguinte). Foi para as mãos do André, do pessoal do editorial, para preparação, revisão, estudo de capa, estudo de custo, todas aquelas coisas que, igualmente, fazem parte da tradução de um livro desse porte, fazem parte também dessa história.

 

O Ulysses foi um livro com uma estória das mais conturbadas. A dessa tradução, em comparação, foi mais do que tranquila.

 

Coisa de dez anos depois do ímpeto original, possivelmente nove anos exatos depois daquele dia no ônibus para São Paulo, o Ulysses saiu aqui de casa. A gente está ainda esperando o nostos. O Ulysses 2011 foi entregue à editora no dia 19 de agosto, aniversário de 507 anos da batalha irlandesa de Knockdoe, mas, aqui em casa, dia de chorar à toa.

 

Quando isso tudo começou eu não era casado com a Sandra.

 

Quando isso tudo começou a minha filha era pequenininha.

 

Quando isso tudo começou eu era tranquilamente um professor de Linguística, e não uma figura colocada meio enviesada nos estudos literários.

 

Quando isso tudo começou eu nem imaginava fuçar nos meandros do mercado editorial.

 

Quando isso tudo começou eu nunca tinha saído do Brasil.

 

Quando isso tudo começou o Ulysses era só um livro, ou na verdade só a reputação de um livro. Hoje é o livro que mudou a minha vida, e o livro que eu mais mudei, em que eu mais mexi, na esperança de não impedir que ele possa exercer o poder imenso que tem de mudar a tua também.

 

Tudo começou em 1904.

 

Tudo começou em 1922.

 

Tudo começou em 2012.

 


[i] Sou professor de Linguística e, na época, atuava quase que exclusivamente na área de Linguística histórica. O Ulysses mudou até minha carreira, como logo se verá./p>

[ii] Quer ver como eu sou leviano? Joguei fora essa lista.

[iii] Que seriam acompanhadas daquilo que outra colega importante, Liana Leão, chamou de “a maior nota de rodapé da história”, as mais de seiscentas páginas em folha A4, espaçamento simples, da tradução do Ulysses, para gerar uma tese que pesava cinco quilos, tinha mais de mil páginas, três volumes, e teve de ser levada pessoalmente, por mim e pela Sandra, de novo de ônibus, até a USP, quando do “depósito” da versão final, simplesmente porque ia ser “meio caro” (imprimir e encadernar já não foi barato) pôr no correio os 50 quilos dos dez exemplares que a universidade pedia.

[iv] Para quem queria estudar léxico romeno renascentista...

[v] Uma grande exceção, que demonstra plenissimamente a dedicação de Plínio Martins Filho, foi a publicação de Finnegans Wake/Finnícius Revém,pela Ateliê Editorial. Mas nem não foi nada fácil.

Aliás, a Ateliê, por muito pouco, não foi a casa do meu Ulysses. Depois de vários projetos meio indefinidos e de ter chegado até a desenhar o logo da editora informal que eu e o Luís montaríamos só para lançar uma edição limitada do Ulysses, os contatos com a Ateliê andaram bastante e só não se concretizaram por uma opção (dificílima) minha pela Companhia das Letras. Só tenho a agradecer à Ateliê, que, certamente, teria feito um lindo Ulysses.

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