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A alquimia da tradução

Donaldo Schüler

 

 

Lancemos três perguntas: “É possível traduzir Finnegans Wake?”; “É possível ler Finnegans Wake?”; “Como foi possível escrever Finnegans Wake?”. Deixemo-las rolar como dados heraclitianos, ou como o lance mallarmaico, que jamais abolirá o acaso, confiantes no jogo da vida e dos textos.

 

É possível traduzir Finnegans Wake? Ampliemos a questão: é possível traduzir? Traduzir deriva de traducere,levar de um lugar a outro. Conduzimos palavras, imagens, conceitos, textos... Saímos do nosso lugar em direção a outro lugar, traduzimos. Textos, imprecisos, lacunosos, reverberam contextos. A marcha dos horizontes abala o panorama verbal. O Hamlet de Shakespeare, mil vezes analisado, comentado, representado, muda de rosto a cada relance.

 

Antes de traduzir, devo ler. Posso declarar ilegível um texto, se não avanço no emaranhado textual? Eu não consigo lê-lo, mais não posso afirmar. A ilegibilidade não passa de dificuldade localizada. Algo é ilegível para mim, em certo momento. Isso não significa que seja ilegível para todos e sempre. Um texto escrito em polonês me é ilegível agora. Poderá não oferecer dificuldades a iniciados. Quem não leu o texto, está fora do texto e, assim, não está autorizado a apontá-lo como ilegível. Só quem o leu poderia declará-lo ilegível. Como o faria se já o leu? A ilegibilidade nunca é qualidade do próprio texto. Dizer que Finnegans Wake é ilegível leva a paradoxos. Relembremos algumas das significações de legere,verbo que deu origem a “ler”. Legere: enviar, reunir, roubar, espiar, colher, navegar, ler... Não podemos reunir tudo, não podemos navegar todas as águas. Lendo, limitamo-nos a roubar, espiar, recolher... Roubando, espiando, recolhendo, lemos e traduzimos. Obstruções e transgressões promovem o tecer textual. Isso já foi assim no século XIII. Uma nota biográfica do poeta provençal Arnaut Daniel diz que suas canções não são fáceis de entender. O autor da nota exemplifica a dificuldade com a citação de três versos, encabeçados por este: “Ieu sui Arnautz qu’amas l’aura”. Augusto de Campos traduz o verso assim: “Eu sou Arnaut que amasso o ar (amo Laura)”. Na tentativa de reamalgamar o que foi desdobrado numa primeira tradução, Augusto chega a: “Eu sou Arnaut que am(ass)o (l)a(u)r(a). Outra possibilidade seria dizer: “Eu sou Arnaut que amaço Laurora”, isto é: eu amo Laura com amor forte, de aço, pois Laura é minha aurora. Na tradução, rompemos, recolhemos e voltamos a partir o que foi partido. Partimos e reunimos para não perder.

 

De outro lado, poderíamos afirmar que só os textos ilegíveis merecem ser lidos. O ilegível reside no estranho, recusa e provocação, revestido por palavras. Textos ilegíveis convocam o leitor para que flua o que no texto se concentrou. Textos legíveis traem porque não apresentam nada. Cansam por nos obrigarem a navegar no óbvio. A quantidade que, em curto espaço de tempo, se amontoa reduz-se a muito pouco ou a nada. Abundância só de palavras, só de páginas. Textos legíveis comportam-se como tantas conversas vazias que não oferecem mais do que o conforto da banalidade.

 

É possível traduzir Finnegans Wake? João Alexandre Barbosa avança: “Como foi possível escrever Finnegans Wake?”. Suprima-se temporariamente o objeto. Como é possível escrever? Comecemos por uma obra clássica, a epopeia de Camões, Os Lusíadas. “As armas e os barões assinalados...”nos traz à lembrança um poema escrito em outro tempo e em outra língua. O vate português nos oferece uma tradução aproximada de Virgílio: Arma virumque cano... (“Canto as armas e o varão...”). Estamos diante de uma tradução e de um problema. Camões converteu o singular virum no plural barões (varões). Lembro camonistas: o épico entende por varões o povo lusitano. Do poema de Camões aos camonistas, deparamos outra tradução. Varões é povo? O que tinha Camões por povo? Com certeza, não o que pensava Robespierre, não o que entendia Marx. Varões compreende humildes, compreende mulheres? Traduzir varões com povo,sem resolver, amplia a área da indagação. A indecisão se agrava quando ouvimos Jorge de Lima dizer, na abertura de Invenção de Orfeu: “Um barão assinalado / sem brasão, sem gume e fama / cumpre apenas o seu fado: / amar, louvar sua dama...”. Em lugar do aventureiro de outrora, o homem falido, atormentado por conflitos sentimentais de meados do século XX. Textos levados a novos contextos de época e geográficos mudam de sentido.

 

A tradução não termina em Virgílio. Virgílio evoca, em seguida, as praias de Troia (Troiae ab oris). Ora, cantor de Troia foi Homero, modelo de Virgílio. Homero foi o primeiro? Já se localizaram fragmentos de vários poemas épicos do ciclo troiano, surgidos à época em que se formaram a Ilíada e a Odisseia. Todos são caudatários de uma extensa tradição oral, que deixou vestígios na cerâmica, na poesia lírica e no teatro. Textos constroem-se sobre textos. Qual é o primeiro? Conclusão: a história literária é uma tradição de traduções. Na distância aberta entre um texto e outro navegam as significações. A tradução literal, se isso fosse possível, anularia a distância, aniquilaria o sentido. A divergência fomenta a produção literária.

 

Invenção e tradução concorrem. O escrito revive na reescrita. O cotidiano, venha do presente, do passado ou de antecipações, revive no escrever e no reescrever. Na passagem do cotidiano ao literário ocorrem transformações, vinga a metáfora.

 

Joyce frequenta textos do Ocidente e do Oriente, presentes e passados. Como foi possível escrever Finnegans Wake? Os ventos que sopram em torno das sepulturas ao final das guerras napoleônicas, no primeiro capítulo, são os da regeneração. A ave que junta fragmentos lembra Ísis a recolher os pedaços de Osíris, ou ba, a alma que retorna para reavivar os corpos. Recolhidos, os textos renovam o vigor da escrita. Recolher, reinterpretar, recompor, este é o trabalho do escritor. Trazendo de outros lugares para este lugar, traduz. Babel ergue-se como símbolo da diversificação de línguas e da proliferação de textos. O romancista padece o dilaceramento. Unir militarmente, ação do império britânico, é a solução? Joyce age democraticamente. Convoca todos para unir o que se estilhaçou.

 

O registro dos acontecimentos mundiais, realizado da esquerda para a direita (do Gênesis ao Apocalipse) culmina em Deus (God). Se invertermos o caminho, no rumo da dessacralização ocidental, chegamos ao cão (dog). Dante escreveu da esquerda para a direita. Balzac escreveu da direita para a esquerda. A opção de Dante, por navegar do presente ao passado remoto, divino, produz uma divina comédia. Pela rota de Balzac, chegamos ao presente prosaico, à comédia humana. Como para Joyce os contrários (God – dog) não se excluem, giramos, por círculos viconianos, da esquerda para a direita e da direita para a esquerda. A tradução, incorporada na arquitetura de Finnegans Wake, nos leva de Dante a Balzac e de Balzac a Dante. Reunindo o sagrado e o profano, o romance abre caminhos a associações imprevistas, sedentas de sentido: caosmos.

 

A escrita antecede quipos, ideogramas, alfabeto. É mais antiga que cerâmica, pergaminho, papiro e papel. O processo da escrita, a escrita em processo, atua em quaisquer divisões, classificações, estratificações. Escrita anterior aos sinais traçados pelo homem são as runas do universo. O que nos antecede fundamenta o que fazemos. Respiramos porque as veias nos amarram à vida. Devoramos, digerimos e reelaboramos a escrita que a natureza nos oferece. A página escrita é matrutaforno: matriz, truta e forno.

 

A arte de escrever, recente, marca a passagem da selvageria ao barbarismo. Selvagens servem-se de estiletes tirados da floresta. Bárbaros, dominando o fogo, traçam a carvão. O homem distancia-se da escrita natural para construir outros universos. As palavras grafadas não repetem as inscrições em rochas ou troncos. A ignorância treme nos traços de quem escreve, frustra projetos, adia planos. Vigia na deficiência e no excesso. Os períodos de Finnegans Wake alinham-se na busca de hipotética pacificação futura. Selvagem é também o mundo que, ao despertar, deixamos. Não se espere relato fiel das lutas travadas nos subterrâneos. A verdade não está só nos ritmos inventados. Verdadeiros somos também quando tropeçamos, quando a falta de palavras expõe buracos, quando o equilíbrio é precário. O que relatamos se passa nos limites da civilização, da barbárie e da selvageria.

 

Eclode a revolução de Gutenberg. Por anunciar um novo dia, Joyce a cumprimenta com Guten Morgen (bom dia), saudação embutida no nome do inventor da imprensa: Gutenmorg Gutenmorgue. Toda inovação leva a ordem anterior ao necrotério (morgue). A invenção de Gutenberg arrebata a escrita aos sacerdotes, à autoridade dos quais ela, durante a Idade Média, estava subordinada, e a entrega a todos. O Livro passa a concorrer com milhões de livros. A unidade, fundada sobre o Livro, rompe-se com a proliferação de livros. A escrita vulgarizada e incontrolável destrona monarcas, abala mitras. As gralhas dimprensa (misses in prints)anunciam errância, movimentos caprichosos, fendas, liberdade, liberalidades.

 

Deletosa é a hora em que estamos. Deleitosa ela é às vezes; deletosa, sempre. Tempo que não mata não é tempo. À eternidade nos habilitamos pela negação do tempo. A aurora das moscas acontece no fim do dia. Escória alimenta a história: hiscória. Perdas perfuram o saber, seja na perquirição vigilante, seja no sonho. Não cabe ao ator prever resposta. Neste espetáculo a fala flui solta. Texto sagrado a ser lido em voz alta não há.

 

Finnegans Wake ficcionaliza as inter-relações textuais. Achou-se uma carta escavada num monturo por uma ave, a velha galinha (cold fowl) ou velha gelinha, Belinda, a galinha gélida. Isso aconteceu no inverno, época em que a natureza adormecida se prepara para renascer. Hen (“galinha”, em inglês, é “um”, em grego) provoca a passagem da unidade à pluralidade. Sendo esta a origem de Finnegans Wake, não espanta o caráter epistolar do romance. Da carta à obra de ficção, o romance transita da unidade do texto informativo à pluralidade significativa da obra ficcional.

 

A carta veio transatlantabeticamente (transshipt) de outro mundo, do Novo (Boston). Mundo novo não significa mundo melhor. O Novo Mundo formou-se do lixo do Velho. O lixo do Velho Mundo alimenta as raízes do Novo. Sucessos das lixeiras do Novo Mundo retornam ao Velho em viconiano giro renovador. Sempre novas são as instáveis imagens oníricas que transatlantabetizadas enriquecem o romance. Massachusetts (Mass) é massa informe, lixo, sonho, missa fúnebre, encomendação, fala. Anunciando a arte contemporânea, restos erguem as paredes do romance, processo comparável ao trabalho psicanalítico em expansão na mesma época.

 

Lixo é a tendência de tudo que se faz, escreve e pensa. Enérgicas são as exigências da terra. Em monumentos artísticos, o perene é ilusão. Umas coisas duram mais que outras. Eternidade não há. A transição marca a tradução. O tempo deixa marcas em templos, quadros, estátuas e pergaminhos, traduz. O desgaste de obras literárias não é só material. Nosso Homero é diferente do vate cujos ritmos encantaram olvidados ouvintes. A Ilíada de Haroldo de Campos é diferente da homérica. A morte pertence à economia da vida. Arte que não morre não se regenera, não vive. Do cavalo fotografado que se fez macromassa no processo químico da revelação,vêm as imagens perpetuadas pela fotografia. Recolhidos na fatuografia (fadograph), registro inconsistente, imagens do que já foi, dispõem-se ao poder da imaginação. Esteja a fotografia ligada à morte, visto que imobiliza, sendo constituída da materialidade precária das coisas que passam (fade), participa da vida.

 

A areia (sand) suga a tinta, seca a página, modifica-lhe o rosto. O pecado (sin) original é este. Pó pecante em lugar de pó secante surte efeito igual? Perdida a inocência, fica o pecado. Pó pecante reveste o Adão que, expulso do paraíso, nos contamina. Sem pecado, nada acontece. O pó pecante suga e transforma o que a tinta registrou. Podemos contentar-nos com o aparente ou devemos recompor a partir de rastros a imagem dos que passaram? Marca é mácula, pecado, vida. Ínfimas são as naus portuguesas que abrem a epopeia das grandes navegações, modestas são as fontes da ousada aventura de Finnegans Wake: uma carta, boatos. Qual é a relação de Belinda com Shem, o escritor? Não se confundem. A galinha maravilhosa fornece-lhe a matéria-prima: ovos, detritos... A forja, a lapidação, a culinária, a alquimia são obra de Shem. Os dois momentos se integram. Em lugar de inspiração, a coleta do que a vida deixou. Toda construção é precedida por um persistente trabalho de desconstrução. Restos se amontoam na moradia de todos, mas no depósito do escritor dejetos aguardam restauração. Modelo da criação artística é o alquimista – transformações misteriosas, perigosas, proibidas, diabólicas. Experimentação sem regras. Resultado: um mundo diferente do percebido. Risco? Ouropéis. Literatura é lixeratura.

 

O que desejávamos resolvido permanece enigmático: a natureza e a autoria do texto que serve de base ao livro que temos em mão. Que nos pode oferecer um livro que não está seguro de suas próprias origens? Em lugar de resposta a dúvidas, somos convocados a trabalho hercúleo, à elaboração de uma obra construída sobre sinais de fumaça, manchas na água. É como se Finnegans Wake ainda não existisse, como se entrássemos no gabinete do escritor no instante da elaboração, quando tudo ainda se encontra indefinido. Finnegans Wake existe. É livro? Esta é a dúvida. Tudo indica que não passa de um volumoso projeto. Escrever, ler e traduzir já não se distinguem. Quem lê escreve. À medida que lemos, traduzimos, e, ao traduzirmos, passamos do Finnegans Wake ao Finnicius Revém. O rio que nasceu em joyceoleto cava leito em outra língua, outro modo de dizer e de pensar. O vigor do original, revigorado na língua que o acolhe, contorce a sintaxe, restaura a inventividade infantil aquém e além do sistema. Sob o impacto do Finnegans Wake, Finnicius Revém inaugura outro discurso literário que roga ingresso nos muitos que a língua portuguesa, em sua longa história por idades e continentes, já produziu. Como a leitura de uma obra inventiva não se encerra, uma tradução dada representa um momento na sucessão de muitos que não alcançam o estágio do repouso. No sono que intervala o trabalho elaboram-se contestações, alterações, associações. Em lugar de certeza, transições, traduções, traiduções.

 

Digamos que respondemos afirmativamente ao desafio de ler, de traduzir. Nesse caso, estamos na condição de milicianos suíços que beijavam o solo e lançavam pó sobre o ombro esquerdo antes de enfrentar o adversário. Lidar com textos é entrar no campo de batalha. Admitamos dificuldades e riscos. Entregar-se à aventura textual não é trabalho inútil. Nomes próprios, Joyce, o transgressor, os modifica sistematicamente. Arranca-os dos referentes. Torna-os, no baile dos significantes, originários de imprevistas significações. A mudança dos nomes não afeta a constância da vida, atesta até mesmo a vida das línguas. Nomes, livres de suportes, cavam seus próprios leitos, rumam no roteiro das runas. Radicalizando, fatos são fatos, fixos, concluídos. E se interligamos fatos no fluir? Interligadas, palavras, expostas a outras palavras, dizem o que ainda não se disse. Formam, diferem, crescem, geram, morrem, transitam, traduzem. São organismos. Enquanto conflitos extinguem contendores, a vida pulsa. Ela escreve histórias nos corpos que passam.

 

Mesmo que não seja definitiva a luz que textos emitem, ainda assim iluminam. Esta é a sorte da filofosia. O filófoso é um enamorado da luz terrena, provisória, parcial. O filófoso se distingue do filósofo, enamorado do sol que brilha além de todo o visível. O filófoso se contenta com achados pequenos, com precárias áreas iluminadas. A filosofia, na ambição do saber total, pode levar à loucura, filouquecer. O filófoso evoca o porco, animal que fuça a terra, trabalho imundo, vital, sem fim.

 

Sinais, seja qual for o sistema a que pertençam, anunciam ausências. O ausente vive na celebração do discurso. Representação nenhuma poderá pretender equiparação ao objeto representado. Isso já ensinava Platão. Fantasmagórico é o universo verbal. Faça-se a afirmação que se fizer, ela será sempre traidora, prostituída, por mais fiel que pretenda ser. No caso da carta encontrada por Belinda – assim se chama a galinha – a dúvida corrói certezas no todo e em cada uma das partes. Como atribuir garantia a fatos transmitidos por telefone? Telefônicas são, em Finnegans Wake, todas as informações vindas de vozes que não nos falam diretamente aos ouvidos. Vozes que vêm de experiências recentes, da infância, de outros séculos, de civilizações remotas, de inquietações que afligiam o homem nos alvores da espécie. Certa, só a autoria. Será? Até esta garantia, enfaticamente afirmada, sofre abalo.Por mais rigorosos que pretendamos ser, somos capnomantes, procuramos dar sentido a imagens movediças desenhadas no ar pela fumaça. Capnomantes ou infusionistas, intérpretes de manchas que folhas de chá deixam na água quente. Todos os intérpretes de sinais estarão na categoria de capnomantes e infusionistas? A carta examinada dança nas águas turbulentas da mente como que guardada no fundo de uma garrafa atirada ao mar.

 

Feminina é a origem da escrita. A mulher [ishah] ishcreve:escreve [schreiben] e grita [shreien]. O grito, naparturiente e no infante, anuncia a aurora da vida. Arnaut ama em Laura a aurora. A mulher escreve no próprio corpo. A concepção, a gestação e o nascimento deixam marcas nela. Ela é carta que sustenta cartas, a vida que origina vidas. O nascimento é queda que repercute na sucessão das quedas. Diante do texto de origem feminina, estamos na situação do HCE seduzido pela fonte da vida. Os furos que se alargam na página carcomida mostram o corpo dançante de Lilith, o primeiro esboço de mulher, a pecaminosa, a sedutora. Belinda pode ser mera marcela, majestade anã, sombria, misteriosa, louca, Mermestriz em Arthes, misto de meretriz, mestre e atriz em coisas relacionadas com o misterioso rei Arthur. A carta não é documento anomoroso (não é anômalo, nem anormal, nem sem amor, nem anônimo). Foi assinada por uma pessoa irresponsável, vestida de Toga garotilis (hipotética toga de garotas)em lugar de Toga virilis (toga usada por adultos)? Quantos constatarão que ela não se reduz à ostentação de vestes como as que cobrem o corpo de Nut, o firmamento?

 

Nossos sentidos estão adaptados a Finnegans Wake? Temos ouvidos e não ouvimos, olhos e não vemos, mãos e nada apalpamos? O texto desperta os órgãos que o decifram. A reeducação dos sentidos deverá preparar-nos para experiências oníricas. No sonho, outros olhos e outros ouvidos se abrem para imagens e sons não menos verdadeiros. Com outros dedos, apalpamos outra pele. O sonho faz do panorama panaroma. O que ao despertar submetemos à sintaxe convencional vem de outra cena, pertence a outra linguagem. Os que narram visões noturnas falam franco em turco. Experiências subterrâneas não se aclaram à luz do dia. O trânsito de informações requer polidez mais do que vigilância policialesca. Ligações sutis operam contra a rigidez de princípios aristotélicos.

 

Considerem-se três momentos: o sonho, o relato do sonho e a decifração. Esta última operação requer paciência. Observações jocosas, frases soltas podem desempenhar função relevante na engrenagem da máquina universal em que, querendo ou não, funcionamos. A carta que estamos lendo, o livro que temos na mão, é uma epiepístola, a epopeia da humanidade em forma de epístola. Haverá ócio para decifrar este negócio?

 

Mistura de preto e branco, a escrita não poderá reduzir-se a preto no branco. O texto se alarga esburacado. Híbrido é o texto em que preto e branco, verdade e mentira se enredam. Não há como derivar puro de híbrido. Mácula na linhagem, como Shem, Finnegans Wake é outlex, fora da lei (lex), fora do léxico, ilexical. Leis conferem legalidade à língua. Estrangeirismos, solecismos, neologismos, burlando a vigilância, pleiteiam reconhecimento. Imprevisíveis são as artimanhas da escruta (escrita + escuta). O fora da lei é ameaça aos que vivem na lei. A escrita sabe corromper o legado de outras gerações, emprestando ao consagrado inusitada indentidade. A arte de escrever mantém as marcas da exclusão, vigor híbrido para o bem dos que excluem.Que seria dos que vivem na legalidade sem a agressão do fora da lei? A atmosfera se tornaria irrespirável. O fora da lei oxigena o ar.

 

Como traduzir um texto ilexical, que, rebelde a limites, se expande em idioma universal? Traduzi-lo para uma língua particular é efetivamente traição. Mas não falamos língua universal, nem falamos a língua dos outros. Falamos a nossa língua, o nosso idioleto. Este é o ponto de chegada e ponto de partida. Daqui vamos àqueles com quem nos comunicamos todos os dias, aos do nosso grupo linguístico, aos que pertencem a outros grupos, ao universo. Traduzir carreia problemas. Não há correspondências entre uma e outra língua. A língua literária repele subordinações. As decisões do texto criativo são imprevisíveis. Haroldo de Campos: “só os textos intraduzíveis merecem ser traduzidos”. Traduzir Joyce significa revitalizar um texto em estado de deterioração, ativar o ciclismo viconiano. Sem tradução, impera a letargia. A alquimia, presente na produção, deverá orientar quem traduz. Como? Vejamos.

 

No início do capítulo terceiro, o narrador recorda tenores em cuja boca “Jesus” soava como Chest C. Em português isso dá Chessus.

 

HCE, encabeçando o quarto capítulo, emerge no leão. Admiram-no e o prendem no jardim! Jardim (Garten, al.) de lágrimas? Jardim zoológico? Teargarten (Tier, al. – fera; tearlágrima) presta-se a ambas as interpretações. No jardim, a fera é imobilizada também pelo olhar. Zoológico, parque de vidas, jardim de mortos. Devemos recordar o Getsêmane? Não só. Também o Éden. Não esqueçamos o Phoenix Park, lugar em que HCE foi seduzido por jovens cujos segredos se abriam como corolas de lírios. Chamamos de lacrimológico o zoológico que provoca lágrimas: Qual leão em nosso lacrimológico recorda os nenúfares de seu Nilo.

 

No segundo capítulo, deparamos nightplot. Como, pela manhã, as secreções são depositadas no vaso noturno (nightpot), o que resta de experiências oníricas é recolhido em narrativa noturna (nightplot). Para acompanhar a artimanha de Joyce, a alquimia linguística nos leva a criar varso (verso + vaso) nocturno. A fim de acentuar o escuro da narrativa, propomos nocturvo (nocturno + turvo) varso nocturvo.

 

A tradução dessacraliza. A sacralidade de uma língua não perdura na tradução. Sucessivamente sagrados foram o hebreu, o grego e o latim. As línguas nacionais, sucessoras das línguas universais, aspiravam dentro e fora das fronteiras à devoção que cercava os idiomas que arregimentavam povos. O contínuo trabalho de traduzir evita a restauração do respeito sagrado. Ousando dizer de outra forma o que se tem por lapidar, a irreverência do tradutor macula o sagrado, frustra o projeto da língua soberana, única. Babélico é o trabalho do tradutor.

 

“Minha pátria é a língua portuguesa”, diz Fernando Pessoa. Observe-se, entretanto, que o escritor, ao transgredir fronteiras, provoca o estranhamento, opera como estrangeiro. Vive dentro e fora da língua. Toma distância para reorganizá-la. Lacan dirá que, em Finnegans Wake, a língua inglesa não existe mais. Poderíamos afirmar que, ao receber Finnegans Wake, alíngua portuguesa não existe mais. Não sendo o que foi, renasce transformada, trabalho robustamente iniciado pelos irmãos Campos, capitães de outras agressões. Abalada por Gil Vicente, por Camões, por Eça de Queirós, por Machado de Assis, por Guimarães Rosa, a língua portuguesa habituou-se à tradição dos abalos. Quem habita a língua portuguesa, move-se num organismo em transformação. A transgressão, o estranhamento, o exílio, a vertigem é a vida da língua portuguesa. Quem a elegeu como pátria, vive perplexo.

 

A tradução pode não se dar. Passagens resistentes requerem tratamento cuidadoso. Ninguém determinará dia e hora para a tradução acontecer. Tradução não é só a recuperação do que foi dito em outra língua, é a invenção de uma linguagem que afeta a língua receptora. Finnegans Wake não esconde núcleo pétreo, imóvel. Indecisos como as criações de Salvador Dalí, monumentos se decompõem, imagens escorrem, conceitos transgridem fronteiras. A verdade do livro está no fluir, na transição, na tradução – alquimia.

 

 

Referências bibliográficas

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