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Fiel na infidelidade

Conversa com Mamede Mustafa Jarouche sobre sua tradução do Livro das mil e uma noites[i]

 

Por Simone Homem de Mello
Edição de Isabella Marcatti

 

 

 

Simone Homem de Mello: Traduzir o Livro das mil e uma noites tem algo de singular, Mamede. Trata-se de uma obra que todo mundo acha que conhece, por ser amplamente difundida em adaptações, mas que ­– no fundo – é completamente desconhecida, pois até recentemente não havia nenhuma tradução direta dos manuscritos originais. Sua tradução deixa transparecer algo de arcaico, do ponto de vista narrativo, inexistente em outras versões em português. Além disso, ela evidencia a estrutura dos manuscritos, o encadeamento e o encaixe das histórias. Eu gostaria, então, de perguntar: como é traduzir um livro que todo mundo acha que conhece e, no fundo, ninguém conhece?

 

Mamede Mustafa Jarouche: Bem, não posso fazer nenhuma apreciação estética de traduções para outras línguas. Consultei algumas, mas não tenho condições de falar se, por exemplo, alguma tradução francesa é esteticamente eficaz ou não. Mas tenho a impressão de que a tradução do René Khawam, editada na década de 1960 e reeditada na década de 1980, tem um tom meio iluminista. A narrativa de Shahrazad às vezes parece voltaireana, os personagens têm uma ironia iluminista, que não é a deles e nem poderia ser, obviamente. E as citações e usos que ele faz das fontes são, para dizer o mínimo, obscuros, fato esse que fica mais claro nos quatro volumes da sua tradução francesa, pois a edição brasileira, que desdobrou esses quatro volumes em oito, suprimiu as introduções que constavam em cada um dos quatro volumes, introduções essas que contêm explicações ambíguas e às vezes francamente mentirosas. Fique claro que não foi por esse motivo que a edição brasileira suprimiu as introduções, mas sim por simples comodismo. Já a de Antoine Galland (1646-1715) é uma tradução antiga, na verdade a primeira para uma língua ocidental, do começo do século XVIII. Hoje, rigorosamente falando, ninguém qualificaria o trabalho do Galland, que é um “clássico” da literatura francesa, como uma tradução estrita. Ele possuía o manuscrito mais antigo do livro, que até hoje está na França, na Biblioteca Nacional. Mesmo assim, ele reescreve, suprime trechos, faz cortes. Há uma história em que o rei fica espionando a rainha, que está com um amante. Trata-se de uma cena sexual razoavelmente apimentada, que Galland se limita a comentar da seguinte forma: “E viu o suficiente para certificar-se de sua infâmia”, ou algo assim. Na tradução inglesa de Edward Lane, realmente moralista, a cena é simplesmente substituída por pontinhos. É nesse sentido que Borges diz que Galland não era moralista, e sim decoroso. Um colega comentou isso comigo dizendo que o “suficiente” de Galland parece censura, mas não é, pois já era pesado para o contexto do início do século XVIII.

 

Pensando justamente no expurgo do texto, cotejei um trecho da história do “Pescador e do gênio”, na sua tradução e na do Galland. Ele simplesmente narra como o pescador sai para pescar, partindo de madrugada, à luz do luar, e chega ao mar, onde se despe e joga as redes: “Il partit un matin au clair de la lune et se rendit au bord de la mer. Il se déshabilla, et jeta ses files”. Na sua tradução, a cena é repleta de detalhes: “De uma feita, ele saiu com a rede durante as chamadas para a prece da alvorada, a lua, ainda visível, caminhou até os limites da cidade e chegou à praia. Depôs sua cesta ao solo, arregaçou a túnica e avançou até o meio do mar, quando, então, lançou a rede, esperou que ela assentasse e começou a puxá-la, reunindo, aos poucos, os seus fios”. O que Galland faz, nesse caso, é simplesmente extrair a súmula do enredo, eliminando todos os detalhes que não contribuem para sua progressão. O curioso é que Borges, em seu livro Sete noites, elogia a tradução de Galland como a mais encantadora de todas, apesar de essa tradução contrariar o que ele considera – no mesmo ensaio – um dos traços mais marcantes das culturas orientais: o desprezo pela “sucessão dos acontecimentos”. Afinal, a concepção narrativa de Galland parece ser essencialmente centrada na progressão do enredo. (E Borges diz: “Sabe-se que a cronologia, que a história existem, mas são – antes de mais nada – constatações ocidentais. Não há histórias da literatura persa ou histórias da filosofia indostânica; tampouco há histórias chinesas da literatura chinesa, porque as pessoas não se interessam pela sucessão dos acontecimentos”.)

 

A respeito disso, tenho algo a contar. Eu traduzi esse texto do Borges para o árabe e tive que colocar uma nota dizendo que isso era uma brincadeira dele. [Risos] Afinal, nenhum leitor árabe entenderia. Muito pelo contrário, muitos historiadores árabes clássicos são obcecados com a datação exata, essas coisas. No século XI ou XII, os historiadores narravam os acontecimentos ano por ano, dividindo a história por reis, príncipes, dinastias. Imagine um chinês sendo informado de que não tem história da literatura chinesa, porque não tem cronologia.

 

Mas a ideia de Borges é belíssima. A supressão do tempo combina com a afirmação de que o tempo é uma convenção, de que o tempo, na verdade, não existe. Isso tem muito a ver com o que o Borges defende, e aí ele transforma o Oriente numa espécie de...

 

Argumento...

 

Exato. Podemos igualmente, se você quiser, falar em pretexto. Borges também se refere a uma noite específica do livro, setecentos e pouco ou seiscentos e pouco, não lembro mais, apontando algo de espantoso, que é o fato de, nessa noite, Shahrazad contar ao rei a própria história dele. Para Borges, dado que o fato de Shahrazad contar histórias é fundamental na história do próprio rei, isso criaria um efeito de circularidade infinita, do tipo “Shahrazad conta ao rei uma história, na qual Shahrazad conta ao rei uma história, na qual Shahrazad conta ao rei uma história, na qual...”, isso ao infinito. Então todos os estudiosos e amantes de literatura foram atrás dessa noite, entre eles, Italo Calvino e Milton Hatoum, mas não a acharam em nenhuma edição ou tradução do livro. Seria mera invenção? Eu me lembro de que, mexendo numa edição em árabe das Mil e uma noites, de Breslau, achei isso.

 

É mesmo?

 

O Richard Burton, outro tradutor das Mil e uma noites, começou a traduzir textos que não se achavam em lugar nenhum, textos que só existiam num manuscrito e não noutro. E, aí, o que ele começou a fazer? Começou a numerar, conforme uma ordem estabelecida por ele. Depois de traduzir de 1 a 1.001, ele criou um volume chamado Noites suplementares e renumerou as histórias. Então, uma história que só existe no manuscrito Y e que ocupa, nesse manuscrito, as noites 326 a 448, por exemplo, se era a primeira, ele, Burton, renumerou como 1, entendeu? A essa noite, a essa história que foi narrada na noite 1.001 na edição de Breslau, o Burton deu outro número, que é esse, seiscentos ou setecentos e pouco. No entanto, qual foi o problema do Borges? Ele não deixou de citar por nenhum motivo específico; simplesmente estava escrevendo para quem entendia; e o pressuposto dele era o seguinte: “eles sabem que eu não sei árabe, eles sabem que eu li no Burton”. Entendeu? Ou seja, o número, ele tirou das Noites suplementares, do Burton. É lógico, as elucubrações são dele.

 

Mamede, nesse seu trabalho monumental de traduzir o Livro das mil e uma noites, você não só é tradutor, mas também organizador da coletânea, tendo consultado diversos manuscritos e edições. Como foi, exatamente, esse trabalho de edição?

 

Veja, você tem que ter um ponto de partida. Parti dos manuscritos existentes e da edição crítica de Muhsin Mahdi [1926-2007]. É um trabalho importantíssimo, porque ele pega os manuscritos do ramo sírio, que são os mais antigos, e faz a edição crítica desse ramo. E aí temos um volume muito útil e valioso, com aparato crítico, que eu usei muito. Ele cita tanto as diferenças em relação ao texto base como as diferenças em relação ao ramo egípcio. Apesar de bem extenso, não é um trabalho exaustivo, porque as diferenças são tantas que não haveria como recensear tudo; então ele se fixa nas coisas mais significativas. Como intérprete do texto, como crítico, acho que ele é meio discutível, mas, como fixador do texto, é ótimo. Portanto, não posso negar que também foi um ponto de apoio, pois o manuscrito às vezes é ilegível.

 

No primeiro e no segundo volumes, não tive problema, porque simplesmente peguei o manuscrito do ramo sírio e traduzi. Na verdade, tive um probleminha no segundo, sim, porque o ramo sírio termina no meio de uma história, a história não é completada, ela só se completa no ramo egípcio. Em sua recente tradução alemã, Claudia Ott se deu ao luxo de traduzir a última história, incompleta, indo até onde o manuscrito do ramo sírio vai e ponto final. Ficou incompleta. Agora, como tradutor para a língua portuguesa, eu não podia fazer isso, porque não temos nenhuma tradução completa anterior. Então, sem saber o que ela tinha feito, traduzi a história até o ponto em que ela se interrompe, mas coloquei um anexo com a história inteira, a partir de outra fonte, a partir de outro manuscrito do ramo egípcio. Fiz isso porque não poderia deixar a história pela metade, por causa das peculiaridades da nossa cultura e do nosso mercado também: o editor não aceitaria.

 

Agora, o problema mesmo começou, para mim, no terceiro volume, e também no quarto. Eu podia fazer o que quisesse, e isso, na verdade, me criou mais problemas do que ter um manuscrito único para seguir. No ramo egípcio, você tem uma infinidade de coisas, as edições impressas, manuscritos com histórias diversas. Então resolvi privilegiar as histórias que não constam das edições impressas tradicionais das Mil e uma noites do mundo árabe. Mas aí, por exemplo, a história do navegante Sindabad, o que faço com ela? Então, eu a traduzi de um manuscrito diferente, uma versão cujo conteúdo é diferente daquele das edições impressas. O quarto volume também foi nesse ritmo, assim, um inferno, porque eu não sabia o que fazer. Foi então que decidi parar, porque senão vou ter de me dedicar a isso para o resto da vida e quero fazer outras coisas.

 

O que realmente me surpreendeu muito ao ler sua tradução foi a radicalidade das histórias em sua versão original, não diluída, nem expurgada, seu grau de irreverência, uma irreverência totalmente transgressora e anárquica. O texto se escreve numa linguagem de fórmulas, que vai se repetindo e gerando um código verbal com uma lógica interna, capaz de convencer o leitor da plausibilidade de coisas até mesmo absurdas. Por exemplo, a fórmula “é absolutamente imperioso”, quando pronunciada por um personagem, parece ter a força de reverter qualquer relação hierárquica e neutralizar qualquer relação de poder. Com essa fórmula, uma pessoa que não tem a mínima autoridade sobre a outra consegue reverter a situação a seu favor.

 

Em árabe, esse redundante “é absolutamente imperioso” é: la budda, la budda, que quer dizer “sem escapatória”, “sem saída”. A solução que encontrei parece ser mais feminina, porque você não imagina um homem dizendo “é absolutamente imperioso” – essa é uma fala mais feminina ou estou enganado? A mulher estica mais o discurso; o homem é mais pontual, até mais violento. No caso dessa expressão, “ab-so-lu-ta-men-te”... Quantas sílabas tem? Um monte. E parece que, na pronúncia, vai se realizando o processo de imposição: “é ab-so-lu-ta-men-te im-pe-ri-o-so”. Acho que o próprio fato de a fala ser longa acaba tornando-a um argumento. É “absolutamente imperioso”: depois de ouvir isso, você vai argumentar o quê? “Tá bom!” E parece perfeitamente convincente... Porque o bordão já determina a situação.

 

Eu gostaria que você falasse um pouco do código narrativo dos textos originais, bastante reiterativo, repetitivo, algo que você resolveu relativizar na tradução. Você disse que manter a estrutura altamente paratática, não hierarquizante, do texto árabe soaria enfadonho demais em português.

 

Resolvi cortar algumas repetições de palavra para garantir a legibilidade. “Ele viu a jovem e gostou da jovem porque a jovem era bela e formosa”. Insuportável, né? Se traduzisse o texto da maneira como ele está, quase sem subordinação e só com “e”, “e”, “e”, eu criaria um monstrengo. A leitura talvez se tornasse monótona, e certamente ninguém veria aquilo como exercício de estilo. Portanto, eu me senti na obrigação de achar uma solução estética para aquilo, sendo fiel na infidelidade. Afinal, você acaba traindo o texto na medida em que o tira de uma situação de leitura em que ele tinha um determinado nível de legibilidade e o repõe numa situação em que essa legibilidade requer uma reestruturação sintática. Se reproduzisse a estrutura repetitiva, sendo fiel aos “e”, “e”, “e”, eu seria infiel, pois, para o leitor da tradução, o texto não seria tão fluente como para o leitor do original.

 

O que você fez, portanto, foi uma transferência de códigos narrativos.

 

Hoje já não se escreve mais assim em árabe. Há mais cuidado em subordinar as ideias, e essa sucessão paratática, ou pelo menos determinada pela conjunção aditiva, é mais característica das narrativas mais simples. Em autores clássicos, Ibn Al-Muqaffa’ [m. c.757] ou Al-Jahiz [781-868 ou 869], você vai encontrar subordinação. Sua ausência acontece em um tipo de narrativa mais plana, mais simples, digamos, no sentido mesmo do encaminhamento da coisa. Hoje, o sabor das Mil e uma noites, para um leitor árabe, é meio arcaico. Acho que o modo como tento traduzir, fazendo frases longas, nisso também estou, de certa maneira, sendo fiel ao texto, porque, no árabe antigo, você também não tinha ponto final, vírgula, coisa nenhuma. A pontuação é uma coisa recente, do século XIX, só foi introduzida com a tipografia. Então, fazendo frases longas, acho que estou oferecendo uma coisa com sabor mais antigo. Ou, pelo menos, tento. Não sei se consigo...

 

 

Procuro evitar anacronismos; tento, o tempo todo, evitar que o leitor se familiarize com a língua no sentido de dizer: “Ah, é um texto moderno”. Eu tento fazer isso. E aí há essas opções, por exemplo: o “absolutamente imperioso”; é algo que não se diria hoje, ninguém escreveria, hoje, “absolutamente imperioso”. Até porque tem uma redundância aí: ou é imperioso ou... não precisa ser absolutamente, absolutamente necessário. Há outras coisas, outras construções em que procuro manter o sabor arcaico.

 

Fico pensando em precedentes da nossa literatura que possam servir de parâmetro na reconstituição de uma linguagem arcaizante e de um ritmo narrativo impulsionado pela repetição. Penso, por exemplo, nas narrativas, nos romances de cavalaria e em prosa, em língua portuguesa, como A demanda do Santo Graal. A nossa prosa medieval é repleta de fórmulas reiterativas.

 

Sim, os textos dessa época se produzem conforme essas fórmulas. Isso também serve para caracterizar o gênero, a função do texto. É uma espécie de tópica. Por exemplo, no Kalila e Dimna, o tempo todo o personagem fala assim: “Olhe só, se você não fizer tal coisa ou se você fizer tal coisa, você vai se dar tão bem, ou você vai se dar tão mal, quanto se deu fulano”. Aí a pergunta é esta: “E como foi isso?”. É sempre assim. E então entra uma história. O que hoje é estereótipo, aquela coisa preconcebida, fazia parte da narrativa. Estamos longe de uma ideia que vai vigorar, por exemplo, a partir dos séculos XVIII, XIX, de uma concepção quantitativa de tempo, em constante modificação, superação, no qual a coisa sempre caminha para o melhor.

 

 

Nas suas Mil e uma noites, tenho a impressão de estar imersa em um texto altamente estruturado, com alto grau de elaboração linguística e detalhamento formal. Em meio a uma ficcionalidade mágica e irreverente na transposição dos limites da expectativa, mas regrada por uma linguagem de fórmulas que, pela contínua reiteração, gera a ilusão de uma rigorosa lógica, apesar – muitas vezes – da total falta de plausibilidade. E a sua tradução também espelha essa combinação de rigor formal/estrutural com imaginação libertária, pois a linguagem é altamente sofisticada, sem ser engessada ou empolada, muito pelo contrário; é de uma coloquialidade ágil, que não restringe o grau de elaboração. Para mim, isso foi uma novidade nas Mil e uma noites. Eu não tinha essa imagem do livro. Essa coloquialidade é do próprio texto, não é? Trata-se de um registro do árabe falado, digamos?

 

Ele fica a meio caminho. Não é exatamente um árabe dialetal, porque ainda não existe, até hoje, uma maneira assentada de grafar o árabe dialetal. Não há uma forma de grafá-lo, até porque ele tem fonemas impossíveis de serem transcritos no árabe clássico. O que havia era um gênero poético para poesia em dialetal, o zajal, bem como um tipo de escrita especial para isso, ineficiente, chamado khatt taqti’ al-‘arud. Por outro lado, também não é o árabe clássico propriamente dito. É um árabe a meio caminho. Muhsin Mahdi diz que é a linguagem urbana, ali, do Oriente. Mas, de qualquer maneira, não é um árabe clássico, é um árabe que pode ser considerado coloquial, na medida em que ele mistura diferentes registros. Essa discussão sobre árabe clássico e não clássico vai longe, porque não se sabe ao certo... Tinha um autor árabe que dizia que uma anedota contada em árabe clássico perdia metade da graça, pois esse árabe coloquial não corresponde exatamente à linguagem falada, mas é uma articulação elaborada, de nível artístico. Mas no árabe falado é difícil de separar o coloquial do clássico; você tem níveis intermediários. Nas Mil e uma noites, a maioria das histórias se refere a coisas banais do cotidiano, quer dizer, desejos, situações de intimidade doméstica, de intimidade conjugal e sexual que realmente ficariam estranhas em árabe clássico, presumo eu. Ao mesmo tempo, inclusive pessoas incultas fazem empréstimos a fórmulas estereotipadas do árabe clássico.

 

Não é fácil encontrar esse meio-termo em português, pois a diferença entre registro escrito e falado é grande.

 

Aqui, por exemplo, nós estamos falando que língua? Vamos dizer que não é um português clássico, nem o português da rua, tampouco o de Camões... Não é o português do Milton Hatoum, ou seja, não é o português de um autor brasileiro contemporâneo. Mas também não é um português falado nas ruas. Que linguagem estamos falando? Quanto à variedade dos registros do árabe, que não foi muito abordada pelos gramáticos e lexicógrafos, as Mil e uma noites são um documento interessante. Segundo Mahdi, essas narrativas dão uma ideia de como se falava, não exatamente como se falava, mas uma aproximação da maneira de falar em centros urbanos como Damasco, Cairo etc. Pensemos, por exemplo, na supressão de fonemas: em árabe você tem fonemas como “zh” que, nas Mil e uma noites, fica evidente que não se usava mais, porque, sistematicamente, era substituído pelo “z”’; você tem “z” mais forte, sistematicamente substituído pelo “z” comum, embora na pronúncia seja um “z” mais forte. O que fica evidente é que já não se sabia mais a diferença. Você tem, em árabe, um fonema que é o “th”, sistematicamente substituído pelo “t” ou pelo “s”. E o texto mostra isso. Mostra, inclusive, que às vezes, em palavras nas quais não havia “th” mas “t”, o escriba pensa que é com “th”. Ou seja, dá para perceber que, em certos meios, se estava perdendo o domínio da linguagem culta.

 

Ao traduzir os poemas inseridos na narrativa das Mil e uma noites, você opta por não manter a métrica nem a rima. Por quê?

 

Pela dificuldade. Talvez haja um pouco de comodismo e também a ideia, talvez falsa, de que isso prejudique a literalidade. Como são muitos os poemas, se eu fosse ficar fazendo esses arranjos formais, não ia terminar nunca. Então, acabei optando por fazer uma coisa mais fácil, que não prejudicaria tanto a leitura. Além disso, reproduzir os mesmos padrões formais do árabe ficaria mais cansativo em português. Poderia gerar uma espécie de cacofonia. Em árabe, hoje, bem poucos usam bem esses recursos; isso já é considerado uma coisa antiga, e mesmo reacionária, o que permitiu a um poeta contemporâneo como o palestino Jabra Ibrahim Jabra dizer que tinha “nojo” dos padrões formais clássicos.

 

Mamede, você disse que não pretende prosseguir a tradução do Livro das mil e uma noites. Por quê?

 

Sim, terminei o quarto volume e não vou mais traduzir. Julgo terminado, embora não esgotado, o trabalho com fontes manuscritas. Eu tinha falado em cinco volumes; cheguei a falar em um número maior, mas resolvi não fazer mais. Minha primeira ideia era traduzir as histórias mais antigas e só utilizar a edição impressa para as histórias cujos manuscritos não existem mais. Resolvi, porém, ficar só nos manuscritos, e se um dia eu traduzir a edição impressa, será completa e num outro formato, em outro lugar. Porque não tem isso em português. Qual a diferença, por exemplo, de você traduzir para o alemão ou para o português? Eu traduzi o “Ouro em Lingotes no Aconselhamento aos Reis”, espécie de espelho de príncipes escrito por Al-Ghazali, do manuscrito das Mil e uma noites. O texto do Al-Ghazali é uma coisa e o das Mil e uma noites é outra, porque a ordem, a organização, é diferente. O escriba colocou uma coisa e não colocou outra, há formulações diferentes. Se eu fosse alemão, não precisaria me preocupar com nada, porque, em alemão, o Al-Ghazali está traduzido do árabe e também do persa; e deve haver mais de uma tradução. Se eu me limitasse a traduzir do manuscrito, como agiu Claudia Ott no pouco que traduziu, bastaria seguir essa fonte e ponto final. Agora, eu tive de comparar, tive um trabalho que, se eu estivesse em outro tipo de cultura, talvez fosse desnecessário. Adoro fazer comparação de texto, realmente gosto de perceber que uma fonte diz uma coisa e a outra diz algo diferente. Mas isso consome tempo. Na Alemanha, a Claudia Ott não teve que ficar dando muita explicação sobre outras versões, porque já tinha edições prontas: uma tradução alemã feita a partir da edição de Breslau, uma tradução alemã conforme a edição egípcia de Bulaq, e mais outra, e outra... Borges fala disso, sem esgotar o assunto. Tem um manuscrito que eu achava que só eu tinha traduzido no mundo, ninguém mais – tirando o Burton... Mas a tradução do Burton não conta, porque ele era anárquico, em primeiro lugar, e, em segundo, pulou muita coisa do manuscrito. E não é que descobri que um maldito arabista tcheco, Felix Tauer, já tinha traduzido ao alemão? Até estabeleci o seguinte princípio, válido pelo menos na área de orientalismo, de arabismo: tudo o que você pensar em fazer, um alemão já fez. Já fez há muitos anos. Esquece. [Risos] Eu já tinha terminado de traduzir alguns textos escolhidos desse manuscrito do século XVIII. Fiquei feliz, pensando: “a minha é a primeira tradução do mundo, tirando a do Burton, que não conta”. Aí, quando vou ver, esse alemão... Não só... Sabe quando ele fez isso? Em 1996, ou seja, faz muito tempo, mais de mais de anos! Então você toma aquela ducha de água fria.

 


[i] A conversa ocorreu em 12 de maio de 2012, na Casa Guilherme de Almeida, na série “Livro Falado”, que consiste em diálogos com autores de traduções recém-lançadas. O evento foi realizado na época da publicação do quarto volume do Livro das mil e uma noites: ramo egípcio + Aladim & Ali Babá. São Paulo: Biblioteca Azul, 2012; 528p.

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