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Sobre tradução e leitura

Luis Krausz

 

 

 

Em “Die Aufgabe des Übersetzers” (“A tarefa do tradutor”), Walter Benjamin afirma que é prejudicial e mesmo impossível levar em consideração um leitor ou um receptor no momento da criação de uma obra de arte.[i] A postura estética de Benjamin coincide com noções próprias da antiguidade clássica, que atribuem à arte de um modo geral e à criação poética em particular uma origem sobre-humana, percebendo-as como manifestações numinosas, não condicionadas pelas contingências humanas, que pressupõem a autonomia e a inexorabilidade do ímpeto artístico e, consequentemente, um domínio do mesmo sobre todas as formas e regras da sociabilidade humana.

 

O impulso poético, na Grécia antiga, era atribuído a divindades, as Musas, e a poesia tinha, nesse mundo arcaico, um valor sagrado.[ii] Quando os poetas da antiga Grécia tentam descrever os efeitos da poesia, recorrem, sempre, à linguagem da magia e do encantamento. “Homero refere-se, repetidas vezes, à canção dos poetas como Thelxis, um poder encantatório capaz de enfeitiçar o ouvinte até mesmo contra sua vontade consciente”.[iii]

 

A crença nos poderes encantatórios das palavras não é, da nenhuma forma, exclusiva dos gregos: é conhecida também numa variedade de outras culturas, como por exemplo na narrativa bíblica da Criação, que representa o surgimento do mundo por meio da pronúncia de determinadas palavras – justamente aquelas que designarão a luz, a terra, o mar, o céu e todas as suas criaturas, e que têm o poder de fazer que essas coisas e entes se materializem. Para os antigos egípcios, igualmente, o deus Ptah teria criado o Cosmos pronunciando as palavras que correspondem às suas diferentes partes e aspectos.

 

O poder compulsório e irresistível da linguagem, seu magnetismo e seu encantamento, são representados, entre os gregos, pelo mito de Orfeu, o poeta mítico cujos versos, acompanhados pela lira, eram capazes de produzir efeitos maravilhosos não só sobre os homens, mas também sobre animais selvagens, árvores e mesmo pedras. Dizia-se de Orfeu que, por meio de sua poesia, ele era capaz de deslocar rochas, de conter o fluxo dos rios, além de levar seus ouvintes humanos a um estado de êxtase que não podia ser descrito por meio de palavras.

 

O mito de Orfeu expressa o poder da linguagem, não só como instrumento capaz de comunicar verdades, mas como uma força capaz de constelar realidades próprias, que pode, portanto, ser percebida como milagrosa, mágica, mas também perigosa – e que torna impossível ao poeta levar em consideração os destinatários dessa linguagem.

 

Entregar-se ao fluxo espontâneo e misterioso da linguagem é a essência da poesia: conhecer o dom divino das Musas e a ele submeter-se é um imperativo sem o qual, segundo essa concepção, defendida por Benjamin, não pode haver arte verdadeira. Pois Orfeu, assim como todos os outros poetas da Grécia antiga, era um dos eleitos pelas Musas, deusas que lhe revelavam os caminhos secretos da linguagem, levando-o a afastar-se dos seus contemporâneos para entregar-se, inteiramente, a esse dom.

 

Se Benjamin reafirma, assim como os mitos gregos, o caráter absoluto da linguagem poética, lança, no ensaio “Die Aufgabe des Übersetzers”, uma pergunta: o que se passa com a tradução? Ela é concebida apenas como uma ponte para amparar aqueles que não têm a capacidade de compreender o original? Ou partilha, com a literatura e com a poesia, do mistério da linguagem, de sua autonomia e de sua resistência aos condicionamentos, isto é, de seu caráter misterioso e mágico? Será a tradução apenas uma arte de segunda categoria, que se vê obrigada a repetir, em outro idioma, aquilo que já foi dito pelo original? Mas, afinal, o que “dizem” uma poesia ou uma obra literária?

 

Segundo Benjamin, dizem muito pouco àqueles que a “compreendem”. Isto porque o verdadeiro conteúdo da poesia, o verdadeiro conteúdo da obra literária digna de tal nome, não está naquilo que ela comunica e pronuncia, mas sim naquelas presenças inefáveis que ela é capaz de constelar, ou seja, justamente naquilo que ela não diz.

 

Uma má tradução seria, portanto, uma tradução que se preocupa apenas com a “mensagem”, com o que é dito e expresso de maneira literal, sem levar em conta toda a constelação de alusões, de associações, de significados e de presenças ocultas que são invocadas por cada palavra numa obra de arte original. Em vez de voltar-se sobre o significativo, uma tradução assim estaria voltando-se sobre o insignificante, e consequentemente estaria prestando um grande desserviço ao texto original, com sua multiplicidade característica de camadas de significados.

 

O significativo, numa obra literária, nunca é o seu “conteúdo” direto. Uma obra literária não é um manual técnico de instruções, nem um relato neutro (se é que pode existir tal coisa), mas um universo autônomo, uma tentativa de representar algo que, por definição, é inefável, misterioso, ou seja, algo poético. A tradução que se submete à exigência de servir ao leitor pode no máximo, segundo Benjamin, tornar-se um instrumento impreciso para a transmissão de um conteúdo insignificante. Se a verdadeira obra de arte literária não pode ser criada levando em consideração um leitor, sua boa tradução, portanto, necessariamente será feita nessas mesmas condições.

 

Traduzir é dar nova forma a determinados conteúdos poéticos. A lei que rege tais conteúdos é o original – e ao original é preciso recorrer, o tempo todo, como a um guia e a um caminho. É possível, então, traduzir realmente? Traduzir significa, primeiramente, ler. E ler literatura é, antes de qualquer outra coisa, penetrar nos sentidos ocultos, mergulhar nos conteúdos indizíveis que constituem a essência do texto poético, é alcançar aquele território abstrato onde se desdobram os dinamismos inerentes a cada palavra, e onde se revelam seus poderes subjacentes ou esquecidos.

 

Segundo o escritor judeu polonês Bruno Schulz (1892-1942), cada palavra é, por si só, o fragmento de toda uma mitologia. E o papel do poeta, segundo Schulz, não é outro senão o de um restaurador, o de um homem que se dedica a restituir, a cada uma das palavras que passa por suas mãos, esses significados e dinamismos originais, que se perderam por meio do uso profano, por meio daquilo que Schulz denominou de seu uso “técnico”, que seria o de servir de instrumento para a representação das realidades dessacralizadas, construídas pelo homem da era da ciência, da razão e da indústria, e que, com suas pretensões absolutas, acabaram obliterando aquela outra realidade, metafísica, transcendental, à qual pertenciam as palavras originais.

 

Para Schulz, vivemos numa época de inversão de valores. Nossas concepções cientificistas e racionalistas nos levam a acreditar, equivocadamente, que as palavras seriam representações ou imagens da realidade. Mas na verdade, segundo Schulz (2000, p.240), o que acontece é exatamente o inverso: a realidade é que seria uma sombra da palavra. Schulz afirma que “cada fragmento da realidade só existe graças à circunstância de possuir uma parte do sentido universal”.[iv] Ainda segundo ele, “as antigas cosmogonias expressam esse fato por meio da frase de que no princípio estava o verbo” (ibidem).

 

Schulz, assim como Benjamin, pressupõe a existência de uma linguagem original, imantada, energizada, cheia de potências formadoras, da qual cada uma das palavras do nosso tempo seria uma derivação distante. Ler literatura, ler poesia, é inverter esse caminho de afastamento das palavras em relação à sua origem, é retornar aos sentidos primitivos das palavras, é conhecer um pouco daqueles poderes criadores que lhe foram inerentes um dia. “As palavras em suas formas atuais”, diz Schulz, “são apenas fragmentos, remanescentes de uma mitologia original, que abarcava tudo. Por isso as palavras tendem, naturalmente, a crescer, a se regenerar, para recuperar a plenitude de seu sentido” (ibidem, p.240).

 

O papel do poeta, do escritor, é operar esta transmutação, é reconduzir cada palavra de volta à sua origem mitológica. Schulz compara o poder das palavras aos de uma serpente lendária que foi esquartejada, mas cujas partes buscam, umas pelas outras, no escuro, para reconstruir o animal original. O organismo integral das palavras, da língua original, foi despedaçado em milhões de expressões individuais, em sons, em idiomas, e dessa forma foi submetido aos interesses e às necessidades da vida prática. A palavra foi subjugada aos condicionamentos e às leis da técnica e o papel do poeta é libertá-la dessa prisão, recompor as antigas ligações, reconduzir cada palavra de volta ao seu sentido primeiro.

 

A saudade da palavra, a ânsia da palavra por seu retorno a esse seu lar original é, para Schulz, o que chamamos de poesia. Segundo ele, “a poesia consiste de curtos-circuitos do sentido em meio às palavras, consiste de regenerações dos mitos originais” enquanto as palavras são como os escombros e fragmentos de antigos templos em ruínas, com os quais o homem moderno, como um bárbaro, constrói suas casas. Cada uma dessas palavras provém do grande templo da mitologia, e o dever do poeta é juntar as palavras, reconstruir, na medida em que lhe seja possível, o templo que foi seu lar original.

 

O bom leitor, portanto, é aquele capaz de percorrer esse trajeto. É aquele que, conduzido pelo autor, consegue vislumbrar aspectos daquela realidade inefável que o poeta tinha em vista em seu momento de criação. É aquele capaz de contemplar o indizível por meio do que é dito. E o tradutor, portanto, precisa, antes de qualquer outra coisa, ser um bom leitor. Ler exige, no mais das vezes, mais esforço e mais cuidado do que escrever. É preciso lembrar-se, o tempo todo, que a verdadeira literatura é uma busca por significado, um caminho para levar mais além, em direção àquilo que está por trás e por dentro das formas, em sua origem. Depois de percorrer o caminho do bom leitor, o caminho do tradutor torna-se, simplesmente, um caminho de volta à própria casa, à própria língua, um caminho mais fácil e mais suave.

 

Traduzir cada palavra e cada frase é como subir uma montanha, contemplar pacientemente o que se avista dali para então descê-la por outro caminho. A subida corresponde à leitura, à busca e ao encontro com algum lugar muito particular. A descida, sempre mais fácil, deve trazer consigo as lembranças e as imagens desse lugar que está antes e além das palavras, mas cujos contornos apenas podem ser aludidos por meio delas. O tradutor, assim como o escritor, deve ser um caminhante. O escritor segue suas próprias trilhas, desbrava e descobre penhascos, desertos e florestas virgens e narra suas peripécias e surpresas. O tradutor é o seu hóspede, seu convidado e seu companheiro, que se deixa levar a esses mesmos lugares, familiariza-se com eles, os ama e os odeia, comove-se, sofre, sente-se feliz, observa e reflete para, depois, reunir todas essas impressões, lembranças e sentimentos, enquanto percorre o caminho de volta à própria casa, que é uma outra língua.

 

Sem percorrer essas sendas, o tradutor estará criando meros simulacros, formas ocas que jamais darão conta da tarefa de que foi incumbido. Traduzir bem é, portanto, como escrever sobre as memórias e as impressões de visitas e de viagens que fizemos a outros países, a outras casas.

 

Quanto mais impressionantes forem essas visitas e viagens, quanto mais elas marcarem o mundo das nossas paisagens íntimas e das nossas lembranças, tanto mais fácil, melhor e mais fiel será o resultado. Pois a fidelidade que o tradutor deve ao original não se prende às palavras tomadas isoladamente, em seu sentido corriqueiro e prático, mas justamente àquilo que, por meio delas, o autor não foi capaz de dizer, e sim de constelar.

 

Traduzir é interpretar, é redescobrir e renovar o universo do texto poético e complementá-lo com novas percepções. Pois se o texto poético é, em sua língua de origem, apenas uma das versões possíveis de si mesmo, suas traduções são também suas outras possibilidades, que a ele se equiparam, e a quem podem, às vezes, até superar.

 


[i] Walter Benjamin. “Die Aufgabe des Übersetzers”. In: _______. Iluminationen. Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 1977.

[ii] Luis Krausz. As Musas: poesia e divindade na Grécia Arcaica. São Paulo: Edusp, 2006.

[iii] Charles Segal. Orpheus, the myth of the poet. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1989. p.14.

[iv] Bruno Schulz. “Das Mythisieren der Wirklichkeit”. In: _______. Die Wirklichkeit ist Schatten des Wortes. München: DTV, 2000. p.240.

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