guilherme
programação
museu
educativo
tradução literária
publicações
acervo
serviços
expediente edição atual  edições anteriores

A poesia na vitrine: requinte e ourivesaria

Maria Heloísa Martins Dias

 

 

 

Se tivesse de escolher uma imagem para melhor definir a poesia de Guilherme de Almeida em sua primeira fase de produção, certamente vitrine caberia bem. Há razões para isso.

 

O autor de Canções gregas (1921-1922), seguro e exigente quanto à feitura de suas poesias e profundo conhecedor das técnicas e recursos retóricos de Poética, não abriu mão de rigorosos padrões métricos, rítmicos e de rima, dotando seus versos de uma mestria a ser captada pelo leitor. O resultado não poderia ser outro: uma poética consciente das potencialidades de sua arte e aberta à visitação por quem valoriza o fazer poético competente.

 

Em um primeiro momento de sua obra, até O festim (1922), ainda em sintonia com tendências parnasianas e simbolistas, surgem poesias que prenunciam traços modernistas, posteriores a esse relevo da arte pela arte, desafiando os moldes clássicos. Porém, como nosso propósito é acentuar o que o título da comunicação enuncia, vamos nos deter, embora rapidamente, num poema que exibe sua natureza de artifício bem talhado e oferecido aos olhos do leitor. Trata-se de “O Vaso” (Canções gregas):

 

 

                                    O oleiro trabalha na luz tranquila.

                                    E, sob os seus dedos, da roda silenciosa

                                    um vaso se eleva como uma flor de argila.

                                    Ele modela a base calma, a haste flexuosa

                                    e as asas prontas,

                                    pela curva fugitiva

                                    das ondas,

                                    ou pela folha elegante de oliva,

                                    ou pela folha frisada de acanto.

 

                                    E ele pinta, em vermelho e negro, a cada canto,

                                    ou lutas de adolescentes;

                                    ou guerreiros nos seus carros de cavalos reluzentes

                                    que são fortes nos seus corpos e são finos nos seus modos;

                                    ou algum deus suave no seu milagre antigo;

                                    ou pastores; ou barcos... E, nos bordos,

                                    ele escreve o nome do seu amigo.

 

                                    Quando o homem de lábios lívidos

                                    beber pelo vaso coroado

                                    de rosas, pensará que o vaso alado

                                    é uma boca. E os beijos líquidos

                                    de vinho roxo

                                    cantarão longamente no seu bojo.[i]

 

 

A escolha da figura do oleiro e a focagem de seu trabalho de modelagem do vaso parecem atender bem ao propósito do poeta, não explícito, mas captável pela leitura: o fazer artesanal de um objeto que não se reduz à simplicidade da artesania, ganhando conotações artísticas. Tal como o fazer da poesia, cuidadoso e atento a seus mecanismos mais preciosos. De fato, é o vaso que desponta, não o oleiro, como o título do poema nos mostra; mas, do objeto vai emergindo o seu criador à medida que os versos se desenvolvem.

 

A métrica não é a mesma, porque os versos oscilam entre 10, 12, 7, 15 e 4 sílabas, não necessariamente nessa ordem. Há, portanto, variação, porém, alguns versos repetem os esquemas métricos, criando certo paralelismo, como os versos decassílabos 8 e 9: “ou pela folha elegante de oliva, / ou pela folha frisada de acanto”. Uma modelagem não tão livre quanto parece, pois assentada em reiterações (“vaso coroado” / “vaso alado”). Note-se também a constância da tonicidade em: “ou guerreiros nos seus carros de cavalos reluzentes / que são fortes nos seus corpos e são finos nos seus modos;” (versos 12-13) – três sílabas breves e uma longa.

 

Os versos são todos rimados, seguindo o mesmo esquema, e atendendo a aproximações preciosas como entre “silenciosa” e “flexuosa” (= videira asiática), ou entre “acanto” e “cada canto”. Curioso como a escolha da planta parece refletir o sentido maior dessa poesia: a beleza e o artístico sugeridos pelo “acanto”, planta-símbolo das belas-artes.

 

Há um percurso que vai seguindo o traçado da escultura, começando pela base, a haste (4º verso), as asas (5º), a curva (6º), até chegar à pintura de imagens no vaso (11º ao 16º) e finalmente o nome da dedicatória (17º). Tal gradação é interessante porque acentua a materialização presente do fazer, como se acontecesse no momento da leitura. Outro procedimento que contribui para essa presentificação é a reiteração anafórica do “ou” em versos seguidos (8º-9º, 11º-12º, 14º-15º). É como se cada verso fosse a própria volta da modelagem, alternando-se e completando-se como feitura do vaso e de sua pintura. Desse modo, a ação de modelar e o surgimento do vaso são simultâneos, pelos elementos enumerados que vão sendo introduzidos pela conjunção “ou”. O vaso vai se materializando na pintura que a linguagem concretiza em seu fazer, por meio das alternativas impressas em cada verso. Ou seja, parece haver, nesse poema de Guilherme, uma ênfase ao fazer enquanto performance do ato de criação.

 

As imagens pintadas fazem parte de um universo clássico, marcado pelo espírito bélico (guerreiros, lutas de adolescentes), pelas características físicas (corpos atléticos e modos finos) e pela presença do mítico primitivo (um deus suave, pastores). Mas ressalte-se que a pintura se oferece como possibilidades, ou seja, as alternativas vão acentuando mais a idealidade e virtualidade do que a realidade. Ou isto, ou aquilo, ou isto, ou aquilo, ou outra coisa que a imaginação do oleiro-poeta quiser.Desse modo, as imagens pintadas no vaso não são definitivas, mas se propõem como possibilidades que a roda do verso vai configurando.

 

A terceira estrofe opera um salto no tempo e no espaço criados anteriormente: vemos uma cena futura em que um homem, cujo nome fora escrito na borda do vaso, bebe o vinho e sente os “beijos líquidos” dados pela boca do “vaso alado”. O jogo metonímico instaurado acaba por desvendar a sexualidade que se trama na primeira parte do poema, encoberta pelo trabalho estético de confecção do vaso. A pintura e a escrita do nome do amigo, pelo oleiro, vão dando forma ou corporificando o desejo amoroso que, afinal, aflora no poema. Assim, a feitura do vaso, de certa maneira, promove uma relação homológica por meio da qual a experiência amorosa pode viver a fruição de seus efeitos. A sensação de umidade se concretiza na consoante líquida repetida em “lábios lívidos”, “vaso alado”, e o gosto, na labial /b/ em “lábios”, “beber”, “boca”, “beijos”, “bojo”. Graças a esse investimento na sonoridade e na imagética, o que era hipotético (“Quando o homem ... beber”) se torna real, adquire vida e animismo, corpo, como nos versos “os beijos líquidos cantarão longamente no seu bojo”.

 

Através da produção artística, ou em seu próprio “bojo” (não por acaso, signo final do poema), o amor ganha corpo, transforma-se numa expressão libertadora que permite gozar os impulsos mais secretos.

 

A sugestão da homossexualidade não é estranha ao universo grego, ao contrário; a amizade, tal como Foucault examina em seus estudos sobre o assunto,[ii] é frequentemente associada ao amor incondicional entre indivíduos do mesmo sexo, não comportando preconceitos ou tabus castradores. A liberdade para acolher o outro e a ele se entregar faz parte de um pacto em que prevalece a ausência do Poder ou domínio, e a ascese é fundamental como componente do prazer. Mais ainda, a amizade constitui uma espécie de resistência às imposições do biopoder.

 

No poema de Guilherme, as sutilezas são trabalhadas como constitutivas de uma concepção de arte cujo requinte está justamente nisso; o indiciamento e as sugestões coexistem com um investimento na forma enquanto materialidade a ser manipulada com rigor e prazer. E conhecimento. A “folha elegante”, a “haste flexuosa”, os “cavalos reluzentes”, os modos finos, o “vaso coroado / de rosas”, “os beijos líquidos” são imagens primorosas que traduzem esse clima refinado, onde a poesia reina soberana e com elevada função.

 

Estamos diante de uma maneira de conceber a arte poética como dotada de códigos clássicos, segundo os quais a beleza e o mistério elevado dos sentidos são fundamentais para o poeta. Até mesmo a sexualidade comparece, nessas poesias de Guilherme, como algo circunscrito na raridade e especialidade, imersa numa atmosfera irreal e intensa, incensada pelo imaginário e por gestos que fogem à banalidade. Enfim, um sensualismo estetizante. Refinamento, sublimidade, sublimação da sexualidade, sugestão e preciosismo formal – isso tudo faz parte da poética simbolista que Guilherme revela em seus primeiros poemas. Nesse sentido, parece estarmos diante de um verdadeiro programa poético, como se “O Vaso” se constituísse num paradigma que põe em relevo o projeto estético do poeta brasileiro.

 

Por outro lado, o poema de Guilherme permite-nos estabelecer um diálogo com outro poema, “Vaso Grego”, do parnasiano Alberto de Oliveira, inquestionável fonte a que nos reporta “O Vaso”.[iii] De fato, um paralelo entre os dois textos pode iluminar nossa leitura de ambos os poemas. Relembremos o de Alberto de Oliveira:

 

                                                Vaso Grego

 

                                    Esta de áureos relevos, trabalhada

                                    De divas mãos, brilhante copa, um dia,

                                    Já de aos deuses servir como cansada,

                                    Vinda de Olimpo, a um novo deus servia.

 

                                    Era o poeta de Teos que a suspendia

                                    Então, e, ora repleta ora esvazada,

                                    a taça amiga aos dedos seus tinia,

                                    Toda de roxas pétalas colmada.

 

                                    Depois... Mas, o lavor da taça admira,

                                    Toca-a, e do ouvido aproximando-a, às bordas

                                    Finas hás de lhe ouvir, canora e doce,

                                   

                                    Ignota voz, qual se da antiga lira

                                    Fosse a encantada música das cordas,

                                    Qual se essa voz de Anacreonte fosse.

 

 

Ao contrário do poema de Guilherme, o do poeta parnasiano não presentifica a fabricação do vaso para o leitor, já realizada, mas o momento posterior a seu fazer, em que a taça (copa) é utilizada e admirada. Os “áureos relevos”, portanto, não são mostrados na performance da linguagem, apenas como referência. Outra diferença em relação ao texto de Guilherme é o teor narrativo que já marca a poesia desde seu início, cujos versos apresentam verbos no pretérito e modalizações temporais alusivas ao tempo transcorrido.

 

Também diferindo um pouco da outra poesia, em que o universo grego transparece na 2ª estrofe, na de Oliveira a referência ao mitológico se enuncia logo no 1º quarteto: o objeto em foco vem de Olimpo, o que o coloca numa esfera mais distante e irreal do que o vaso pintado pelo oleiro, no poema de Guilherme. Tendo já servido a um deus, passa agora a servir a outro – Teos –, o poeta Anacreonte, o qual celebra o vinho, o amor e os prazeres da sensualidade. Ter, portanto, passado a outras mãos não desvincula a taça da aura mística e divina, situação que difere do espaço artesanal (mais realista?) do oleiro do outro poema.

 

Na 2ª estrofe do soneto é focalizado o prazer da bebida, aludido pela projeção metonímica do 2º verso (“ora repleta, ora esvazada”) acentuando a sutileza do gozo, bem como se destaca o ornato da taça associado ao sensual: ela “tinia”, “toda de roxas pétalas”.

 

Tal como “O Vaso”, o poema “Vaso Grego” apresenta dois momentos distintos, que, no caso deste último, se demarca pela circunstância “Depois...”, colocada em suspenso. É interessante atentarmos a essa suspensão, iconizada nas reticências, que além da sugestão temporal ou durativa pode reforçar o gesto do poeta Anacreonte, mencionado no 2º quarteto (“o suspendia”), com relação ao objeto, que agora será admirado. O ato de admirar a taça, ou mais especificamente seu “lavor”, corresponde à afirmação de um dos postulados essenciais da poesia parnasiana – o trabalho, a ourivesaria presente na arte, entendida como ornato ou forma preciosa. Enfim, um objeto de culto, tal qual uma peça exposta à contemplação em uma vitrine... E, mais do que o olhar, realiza-se o toque como mais um sentido a ser degustado e, finalmente, a sensação auditiva: a aproximação da taça ao ouvido para a escuta de uma voz/música lírica. Se na 3ª estrofe do poema de Guilherme o homem bebe o vinho e sente “beijos líquidos” na boca do vaso, no de Oliveira cabe às “bordas finas” despertar o prazer, agora voltado à musicalidade que emana do objeto. A taça, metáfora de poesia, se confunde com a “ignota voz”, aquela fonte antiga e primitiva da qual floresce o lirismo, não importa precisar qual a identidade desse canto ou voz, daí ser “ignota”. Importa salientar seus atributos – sonoridade e doçura – características da voz lírica em sua origem. Mélos e encantamento.

 

No poema de Guilherme, o gosto e o contato com a umidade flagrados no gesto do homem ao beber o vinho se traduzem em signos “molhados”, como vimos; no de Oliveira, é a música que ganha relevo, mimetizando-se em sons sibilantes reiterados em “voz”, “se”, “fosse”, “música das cordas”, “se essa voz ... fosse”, além, evidentemente, das rimas que se estendem pelos versos do soneto. Numa leitura retroativa do poema, outros signos acabam por corroborar a sibilância melodiosa de seu final, daí podermos recolher (sorver?) elementos anteriores: “esta”, “áureos relevos”, “divas mãos”, “aos deuses servir”, “deus servia”, “Teos”, “suspendia”, “esvazada”, “taça”, “dedos seus”, “roxas pétalas”, “depois”, “bordas finas”, “doce”.

 

Como estrutura textual, “O Vaso” liberta-se do formalismo do soneto, modelo caro aos poetas parnasianos, mas guarda dessa matriz poética o culto à forma, no que esta tem de requinte, ornamento e esteticismo clássico. As duas vertentes de fins do século XIX, parnasiana e simbolista, portanto, se interpenetram na poesia de Guilherme, nesse momento de sua produção que estamos considerando.

 

Como sabemos, a estética simbolista recupera uma vertente da poesia em seus liames com o mito, concebendo o canto poético como voz alimentada por poderes iniciáticos e simbólicos, envolvida numa aura mística que toma alguns elementos como fetiche. A música é um deles, mas há outros. A sedução pelo vago e imponderável, possibilitada pelo êxtase e embriaguez dos sentidos. Por outras palavras, pelo alheamento, o qual, transposto para o âmbito da realidade histórica, tem outro nome: alienação. Alfredo Bosi,[iv] ao falar sobre a poesia insuflada pelo teor mitopoético, acentua esse traço como componente do canto poético: assoprada pelos ventos da utopia e marcada pela idolatria ou fetichismo, a poesia confina com certo messianismo, pois a fala profética resiste ao engajamento no presente histórico, buscando, antes, a atemporalidade das forças míticas. Já a poesia moderna, em sua superação do estágio puramente mítico, liberta-se do tom profético para engajar-se em outros fetiches, como a materialidade do signo, por exemplo. Isso, porém, seria assunto para outra discussão.

 

Os livros seguintes de Guilherme de Almeida já sinalizam para outras direções, mais modernistas, embora certas matrizes e obsessões temático-formais estejam sempre presentes. A partir de Meu (1922-1923), há novos procedimentos colocados em cena pelo poeta, o que merecerá novos olhares críticos.

 


[i] Guilherme de Almeida. Toda a Poesia. Tomo IV. São Paulo: Martins, 1952. p.25-26.

[ii] Ver, por exemplo, “Da amizade como modo de vida”, originalmente como entrevista concedida porMichel Foucault a R. de Ceccaty, J. Danet e J. le Bitoux para o jornal Gai Pied, em abril de 1981.

[iii]Tal diálogo foi sugerido por Marcelo Tápia em um dos encontros de estudos sobre o poeta, na Casa Guilherme de Almeida, quando da apresentação deste artigo. O poema está em: Alberto de Oliveira. Poesias. Primeira série. Rio de Janeiro: Garnier, 1912.

[iv] Alfredo Bosi. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix; Edusp, 1977.

voltar
Visitação e agendamento para grupos
55 11 3868-4128
agendamento@poiesis.org.br
Programação cultural: contato@casaguilhermedealmeida.org.br

CASA GUILHERME DE ALMEIDA
R. Macapá, 187 - Perdizes | CEP 01251-080 | São Paulo
Horário de funcionamento: terça a domingo, das 10h às 18h

REALIZAÇÃO

Realização
MAPA DO SITE

GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO E SECRETARIA DA CULTURA, ECONOMIA E INDÚSTRIA CRIATIVAS

OUVIDORIA

FAÇA SUA SUGESTÃO OU RECLAMAÇÃO

ATENDIMENTO PESSOAL OU CARTA: RUA MAUÁ, 51

SOBRELOJA - LUZ - SP - CEP: 01028-900

2ª A 6ª DAS 10H ÀS 17H HORAS

TELEFONE: (11) 3339-8057

EMAIL: ouvidoria@cultura.sp.gov.br

ENDEREÇO ELETRÔNICO: clique abaixo

Este site utiliza cookies e outras tecnologias semelhantes para melhorar a sua experiência em nossos serviços. Ao utilizar nossos serviços, você concorda com tal monitoramento.
Consulte sobre os Cookies e a Política de Privacidade para obter mais informações.

ACEITAR