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Questões da Crítica

Aguinaldo José Gonçalves[1]


Sempre gostei da ideia de Northrop Frye ao dizer que o crítico deve atuar como demiurgo entre o texto e o leitor. Creio, com muita convicção, que esta deve ser a verdadeira função crítica. Na mesma direção, devo afirmar que muito me atrai a crítica como gênero, sobretudo, quando ela bailar pelas malhas do texto e com ele se envolver de tal modo que, no movimento das águas, muitas vezes, perdemos a noção de quem são as fibras que se movem e de que maneira elas se movem. Todos temos nossas obsessões, nossas preferências, nesse sentido. Particularmente, diria que é extremamente árduo fazer crítica, e as razões são tantas que me custa expô-las neste pequeno exercício de crítica e de certa invenção, quando penso que os sintagmas que aqui se anunciam não possuem razão de justeza para as páginas que se seguem.

 

Ao dizer desse gosto pelo discurso crítico, devo assinalar que me refiro a certo discurso em que a literariedade assume papel de destaque e que o crítico não se esconde em certa e sorrateira função de descrever a Literatura, e acaba linearizando o que na Literatura é mais caro. Por isso, trago, mais uma vez, a luz de Charles Baudelaire para clarear veredas obscuras e detalhar meios mais tenros das raízes profundas das coisas.

 

Para o poeta de Fleurs du Mal, a crítica tem de ser pessoal e apaixonada. Tão apaixonada que possa abrir janelas capazes de descortinar o mundo. Sempre no fio da dialética e da complexa temperança, o poeta e crítico francês nos conduz à mais sublime noção de crítica. Enquanto existir a noção de que a crítica fala, as coisas ainda oscilarão em relação à sua função diante do discurso literário ou artístico. Não compete à crítica, pois, comentar sobre a Literatura ou opinar se determinado poeta é bom ou não; se as minudências do estilo de um determinado artista o colocam em determinado lugar da Literatura de seu país ou não. Já denunciava com muita lucidez Roland Barthes a relevância do trabalho crítico em lidar com as mobilidades do discurso literário como esfera da validade e não da verdade.

 

Na verdade, o que mais é devido no trabalho de crítica é sua validade inventiva no movimento das relações entre sistemas de linguagens que buscam o ponto isotópico de seu percurso: a compreensão do objeto do desejo no seu desenho original. Nesses movimentos, poucos conseguem eclipsar-se no corpo do objeto que fabrica ou que refabrica dentro da esfera luminosa da criação de mundos. E desses poucos, devem-se eleger aqueles que nosso sentimento crítico indicia e que não podem deixar de ser aqui nomeados.

 

Do estrangeiro, Maurice Blanchot emerge com uma magnitude para mim comovente. A forma como se dá o desenho corporal entre seu estilo e o estilo da obra ou do autor com quem se envolve – julguei esta a palavra mais próxima do que ocorre – é, com toda a possível certeza (!), a mais perfeita, dentro do que imagino como discurso crítico. A paixão, anunciada por Baudelaire e por ele iniciada, encontra em Blanchot seu porto seguro, no modo como se dá o forte abraço entre os dois discursos. Para lembrar Marcel Proust, outro esplêndido inventor de um gênero que denomino de “narrativa ficcional”, para que se tenha um verdadeiro estilo, é relevante que se tenha menos técnica e mais visão. Dir-se-ia que ao realizar seu trabalho crítico, Blanchot nos presenteia com objetos múltiplos. A dança que se trava entre o discurso de Franz Kafka e o seu gera um terceiro universo pleno de surpresas que resulta num ímpar universo de sentidos.

 

A tradução do trabalho artístico pelo crítico acaba por resgatar dimensões semissimbólicas que em nada descrevem a obra; ao contrário, obscurece-a ainda mais pela iluminação crítica. Ocorre no discurso de Blanchot um estreito amplexo, para não dizer amálgama, dos elementos que norteiam cada um dos discursos, o que pode gerar um objeto novo e pleno de relações surpreendentes e singulares. Talvez, nesse viés de especificidade do discurso crítico, a palavra singular seja uma das mais relevantes no que diz respeito à sua natureza. Conferir ao discurso crítico o seu teor de singularidade é situá-lo no seu devido lugar e na sua devida natureza.

 

Os mais complexos e argutos autores ou as mais contundentes obras encontram, quando trabalhados criticamente por Blanchot, um ponto de intensidade iluminada ou “traduzida” de modo que o leitor decifre e esconda, ao mesmo tempo, os sentidos mais recônditos da obra. Penso em Blanchot “dançando” com Mallarmé. O que me parece é que o signo complexo, que determina uma grande obra, apenas possa ser resgatado no trabalho da grande crítica com outro signo que, ao desvelar pontos da obra, abra outras brechas capazes de deitar uma opaca luz sobre a obra em foco. O contrário disso é o caso da falsa consciência crítica determinada pelo tênue exercício de exegese e o tom da crítica acadêmica de dimensões descritivas ou analíticas sem a convulsão interpretativa que possa levar à dinâmica entre o discurso da obra e o discurso da crítica.

 

Nesses casos (e que predominam no meio acadêmico), os estudos críticos – o nome é providencial – reportam-me a uma imagem que há muito acompanha meu espírito: uma lâmpada de luminosidade bem intensa e muitas aleluias que sobrevoam em torno de si. Essa microalegoria lembra-me muito a obra e a maioria da crítica acadêmica. As aleluias tocam a lâmpada rapidamente, voltam a ameaçá-la, chegam a encontrar algumas de suas figuras, mas o calor da lâmpada as espanta, levando-as até a perder uma de suas asas.

 

Num trabalho da expressão de Blanchot, o que se dá é uma profusão de luz ou uma sobreposição de sombras que traz como efeito uma obra extremamente singular, bela, triste e silenciosa. Repito: entramos no mundo poético de Mallarmé pelos raios maravilhosos de Maurice Blanchot. E isso se dá pela profunda competência desse crítico como leitor de Literatura, como captador da literariedade, por um lado; por outro, sua escritura inventiva e densa é constituída de luz própria. Sem dizer daquela visão indispensável para que se tenha o estilo e de quase traduzir a obra em questão por meio desse fusionismo de universo de linguagens.

 

Se pensarmos em outros procedimentos ou em outras formas de diálogo entre discursos e ampliarmos o termo “tradução” para tais procedimentos, encontramos coisas fantásticas com intensidade maior para os efeitos mais precisos e mais efetivos, para os estudos da Literatura na sua essencial natureza.

 

Sobejamente conhecidas, mas que vale sempre lembrar, no sentido a que aludimos, são as relações transcriadoras de obras de Edgar A. Poe, realizadas por escritores como Julio Cortázar ou por pintores como René Magritte. Não foram apenas esses artistas a realizarem seus trabalhos à luz de obras de Poe. Desde Baudelaire, a visão desse pai da modernidade vem sendo traduzida e recriada nos mais variados formatos, reiluminando os passos de uma tradição. Comentarei rapidamente uma obra de cada um dos dois autores acima citados para exemplificar a questão estética que move meu pensamento e que ilustra o que viemos discutindo.

 

No caso de Julio Cortázar, refiro-me ao conhecido conto denominado “A casa tomada” da obra singular Bestiário. Apesar de nada declarar a intimidade entre os contos, são imediatas as relações que passamos a estabelecer entre esse e o também conhecido de Poe, denominado “The fall of the House of Usher”. É evidente que, sendo considerado o melhor tradutor da obra de Poe para o espanhol, a intimidade de Cortázar com o estilo do grande autor das histórias extraordinárias era muito grande, bem como a sua visão da estrutura do conto; esse gênero de contenções e de contensões.

 

Nesse contexto de envolvimento inventivo é que situamos “A casa tomada”, que apresenta uma série de elementos temáticos e estruturais do conto do escritor americano. Uma vez que cerca de 150 anos separam os dois textos, muitos elementos distinguem os dois universos composicionais e interferem na motivação composicional das obras. Exatamente nesse sentido é que se percebem os procedimentos e as intenções do escritor argentino em “reescrever” o conto dentro das formas modernas de compreensão desse gênero.

 

Assim, ao ler o conto de Cortázar, ele acaba se tornando precursor do conto de Poe. No mesmo caminho, mas de outro modo, citamos acima a pintura de René Magritte. Esse fantástico surrealista denuncia a sua admiração pela obra de Poe em exercícios plásticos que realizou de maneira mais ou menos velada. Entretanto, em alguns casos, seu trabalho deixa clara sua relação com alguns textos de Poe. É o caso da pintura Sob o domínio de Arnheim, obra que possui o mesmo título do conto de Poe “O domínio de Arnheim ou o jardim-paisagem”. No caso desse fenômeno estético em que duas semióticas, literalmente, confrontam-se e uma se constrói à luz da realidade da outra, os movimentos se efetuam de uma maneira própria e o efeito estético deve ser revalidado de modo distinto. Trata-se de dois pares de obras em que o movimento de sentidos se manifesta em condições relacionais diferentes.

 

O que nos parece, portanto, fundamental assinalar na Literatura é um fenômeno próprio dos grandes trabalhos de arte, qual seja, as marcas da evolução criadora de uma determinada obra não diminuem o brilho das obras anteriores, denunciando sempre um diálogo retórico que se delineia no interior da moldura oracular e nas esferas da antimoldura. Pulsa numa determinada época a ressonância entre as obras de artistas distintos, revelando aí um estilo de época, um modo de sentir e de mostrar pela linguagem as manifestações humanas e seus desatinos diante do mundo. O interessante é que de nada adiantaria um determinado escritor querer criar no estilo de uma época que não é sua. Isso não ocorreria. Claro está que o contrário até pode ocorrer ou ocorre com certa frequência. Determinado artista anuncia ou adianta o que há de vir, criando uma obra além de seu tempo, e pode não ser compreendido pela grande maioria dos receptores de seu tempo. Tomemos como exemplo os séculos XX e XXI no Brasil.

 

Até meados de 1950 (definir os anos seria trair o próprio fenômeno), tivemos as etapas do movimento modernista com variações de todos os tipos na produção das obras e na abertura do leque de relações simbólicas criadas pelos autores. Por mais que se fizessem diferentes na poesia, por exemplo, autores como Oswald de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes e o primeiro João Cabral de Melo Neto se refletiriam como poetas modernos. Seus poemas trazem o que o modernismo europeu e o americano vivenciaram. Existem conexões profundas entre as obras. Se tomarmos a teoria do Imagismo, criada por T. S. Eliot e Ezra Pound no início do século, vamos perceber as marcas do “correlativo objetivo” nos poemas dos brasileiros, como perceberíamos, provavelmente, tais marcas na poesia de poetas de outros países.

 

É evidente que a poesia de Oswald de Andrade pertence a um modernismo inaugural e, por isso, ela abre veredas e foi chamada (por bem e quase sempre por mal) de experimental. Mas esse experimentalismo ganha asas e se torna realidade na poesia de Murilo, de Bandeira, de Drummond e de João Cabral, e a crítica não dirá mais nada. Em todos eles, vamos conviver com uma poesia de entonação em que o verso adquire valores que não correspondem mais à regularidade métrica da poesia clássica. Se Eliot escreve sobre o verso livre para exibi-lo de forma contida nos seus poemas mais famosos (penso em The Waste Land e Four Quartets), Manuel Bandeira realiza esse exercício poético com altivez e sabedoria, dialogando, permanentemente, com a tradição. Se por um lado, Oswald de Andrade, no Primeiro caderno de Poesia do aluno Oswald de Andrade, constrói uma poesia que se reaprende como se fosse um processo de realfabetização da própria história da poesia, ideia magistral desenvolvida pelo poeta, Bandeira reeduca o verso, na sua poesia.

 

Sabemos todos que a mudança de dominante na construção do verso vem do século XIX, seja pelos descaminhos gerados pela poesia de um Walt Whitman ou mais determinada pelo Simbolismo Francês, conduzida pela poesia de Rimbaud e de Mallarmé. Se não fossem eles, seriam eles, pois essa mudança de direção ditaria os destinos dos novos tempos que estariam impregnados nos destinos do novo homem e da nova consciência. Quanto ao procedimento do verso enquanto verso, assim esclarece Roman Jakobson:

 

Na poesia tcheca do século XIV, por exemplo, a característica maior do verso não era o esquema silábico, mas a rima, pois havia poemas com números diferentes de sílabas por versos (os chamados versos ‘desmedidos’) que eram, apesar disso, aceitos como versos, ao mesmo tempo em que os versos não rimados não eram tolerados. Em contrapartida, na poesia tcheca realista da segunda metade do século XIX, a rima se mostrava dispensável, enquanto que o esquema silábico aparecia como componente obrigatório, e sem o qual o verso não era verso; para esta escola, o verso livre era algo tão inaceitável quanto a arritmia. Na atualidade, nem o padrão silábico nem o padrão de rima são considerados obrigatórios, para o verso; pelo contrário, o componente obrigatório é uma integridade de entonação: a entonação passa a ser o dominante do verso. Se estabelecêssemos comparações entre o verso medido e regular da antiga Alexandríada tcheca, os versos, rimados do período realista, e o verso rimado e medido da atualidade, observaríamos que nos três casos os mesmos elementos (rima, esquema métrico e unidade entonacional) estariam presentes, mas que haveria uma diferença na hierarquia de valores, com obrigatoriedades específicas diversas e mudanças dos elementos considerados indispensáveis. A posição destes elementos específicos determina o papel e a estrutura dos demais componentes. (Jakobson, 1983, p.486)

 

Por várias razões, com o dominante no trabalho do verso, voltado para a entonação, os caminhos da poesia se ampliaram, as gamas de significação se intensificaram. Na verdade, o campo de atuação do poeta aumentou em várias direções. O verso passa a ser um instrumento de significado como todos os demais componentes do poema. Ele atua, graficamente, nas suas formas, na sua extensão, no seu desenho iconográfico, para construir os ingredientes de sentido. Assim, exige que o receptor também acentue seus graus de percepção, incluindo agora o caráter visual do verso e seus movimentos no espaço da folha de papel.

 

Essa concepção atual de verso, em mais de cem anos, vem atrelada ao outro dominante do trabalho de arte. À função poética se conjuga como segunda função, a metalinguística, marca fundamental da modernidade. Esse procedimento traz implicações que só enriquecem e, consequentemente, problematizam a poesia moderna e a contemporânea. Como diria Roland Barthes, ela acaba se apontando com o próprio dedo. De tantos poemas de Manuel Bandeira, em que o verso livre marcado pela entonação se desenvolve no texto a seguir, isso ocorre com sabores de ato inaugural:


NÃO SEI DANÇAR

Uns tomam éter, outros cocaína.
Eu já tomei tristeza, hoje tomo alegria.
Tenho todos os motivos menos um de ser triste.
Mas o cálculo das possibilidades é uma pilhéria...
Abaixo Amiel!
E nunca lerei o diário de Maria Bashkirtseff.

Sim, já perdi pai, mãe, irmãos.
Perdi a saúde também.
É por isso que sinto como ninguém do ritmo do jazz band.

Uns tomam éter, outros cocaína.
Eu tomo alegria!
Eis aí por que vim assistir a este baile de terça-feira gorda.

Mistura muito excelente de chás...

Esta foi açafata...
¾ Não, foi arrumadeira.
E está dançando com o ex-prefeito municipal.
Tão Brasil!

De fato este salão de sangues misturados parece o Brasil...

Há até a fração incipiente amarela
Na figura de um japonês.
O japonês também dança maxixe:
Acugêlê banzai!

A filha do usineiro de Campos
Olha com repugnância
Para a crioula imoral.

No entanto o que faz a indecência da outra
É dengue nos olhos maravilhosos da moça.
E aquele cair de ombros...

Mas ela não sabe...
Tão Brasil!

Ninguém se lembra de política...
Nem dos oito mil quilômetros de costa...
O algodão do Seridó é o melhor do mundo!...Que me importa!
Não há malária nem moléstia de Chagas nem ancilóstomos.
A sereia sibila e o ganzá do jazz band batuca.
Eu tomo alegria!

(Bandeira, 200, p.94-95)



O processo de invenção de Manuel Bandeira, no que diz respeito ao verso livre e aos mecanismos de que se valeu para trabalhar sua poesia, é comparável ao procedimento da pintura não figurativa de artistas como Wassily Kandinsky e Paul Klee. Trata-se de artistas que sabiam desenhar com grande maestria. Frequentaram as boas escolas de desenho europeias e foram eles os responsáveis pelo desvencilhamento da pintura das amarras figurativas. Não sei que termo poderia usar como correspondente, mas ousaria dizer que uma “entonação plástica” passa a ser o dominante na pintura na mesma época e proporção da Literatura. Assim, os elementos figurativos não saem de cena (vide Picasso, Modigliani, Salvador Dalí e outros), mas não são os ditadores do dominante plástico.

 

No caso de poesia, Manuel Bandeira dominava todos os procedimentos de rima e de métrica, tendo aprendido as devidas medidas com os poetas portugueses e franceses. Cremos que, por isso mesmo, introduziu o verso livre de maneira “bêbada” e sábia, marcada pela função metalinguística na sua forma; no seu desenho. Nos livros anteriores a Libertinagem,como Ritmo Dissoluto, Cinza das Horas e Carnaval, Bandeira demonstra sua competência no exercício das formas fixas, mas, principalmente, depois da experiência de Libertinagem, o poeta mergulhou nas experimentações mais fundas no mixhappen style,em que sua poesia procede aos procedimentos retóricos mais conscientes, mesclando os vários modelos composicionais. Trabalha as formas fixas como forma de exercer o que se poderia denominar paródia da retórica, valendo-se dela de acordo com o que se propunha a cantar.

 

Na tentativa de encontrar um caminho crítico, que busque de maneira mais decisiva – se isso é possível de realizar – uma aproximação do crítico àquilo que poderíamos compreender como a essência da obra literária, dois caminhos são vislumbrados, no nosso ponto de vista, como bastante eficazes. O primeiro estaria no procedimento do trabalho tradutório como crítica. Evidentemente, não nos referimos ao exercício de tradução literal em que o que se traduzem são os signos, o léxico e, no caso da poesia, uma tentativa de preservar rimas e macroestruturas do texto. Nesses casos, que são maioria ainda nos dias de hoje, o que se tem não é um trabalho de crítica, mas um ato de degenerescência do objeto de análise ou de tradução.

 

Já o trabalho de tradução transcriadora envolve duas funções críticas fundamentais: o primeiro deles diz respeito ao exercício de linguagem que ocorrerá neste trabalho. Exige-se do tradutor uma percepção linguística e estilística que o conduz ao âmago do texto a ser traduzido. Essa exigência gera uma atitude crítica evidente. Diríamos que isso leva o tradutor/crítico às minudências do universo do texto trabalhado. Dir-se-ia que o reino dos hieróglifos construídos pelo artista será transcriado pelo tradutor de maneira a buscar uma similitude entre os dois textos. Assim, o grau de consciência do tradutor depende do seu grau de ciência e de consciência da linguagem e, especificamente, da linguagem literária. Esses dois requisitos tão determinantes para a saúde crítica da tradução se voltam, decisivamente, para a seguinte questão: a relevância crítica da dimensão semiótica do texto artístico.

 

É evidente que essa constatação não reside apenas no universo tradutório, mas em todo e qualquer exercício crítico que queira se impor como fundamento de linguagem e de gênero a ser respeitado enquanto tal. Exercitar o trabalho crítico sem conhecer e, consequentemente, respeitar os dois planos do signo, ou seja, plano de expressão e plano de conteúdo, é obliterar o trabalho crítico, na verdade, negá-lo enquanto tal, e o resultado é um engodo que não merece ser classificado. A outra vertente que consideramos profícua para as abordagens críticas consiste nos exercícios comparados, seja entre obras do mesmo sistema, seja entre obras de sistemas semióticos distintos. O fato de aproximarmos obras distintas e buscarmos nelas seus estatutos variáveis e invariantes conduz nossa percepção aos fundamentos específicos de cada uma das obras, às suas especificidades, aos seus valores e, finalmente, à sua natureza.

 

Para o crítico, que tem como ponto nevrálgico a obra em questão, a abordagem comparativa é decisiva para descer os degraus da perfuração e apreensão da obra em estudo. Muitas vezes, pontos mais obscurecidos da obra passam a ser iluminados, um pouco mais, quando postos numa condição comparada, quando postos diante da outra obra escolhida pelos pontos similares que apresentam. O confronto textual de duas obras literárias, com graus de literariedade diferentes, norteará, com evidente clareza, as gamas de precisão literária de cada uma das obras. É como se reproduzisse com alto grau de resolução uma fotografia. Entretanto, para que essa atitude crítica se realize, faz-se mister que o crítico tenha a competência analítica conduzida pelos atributos que acima consideramos.

 

De nada adianta a presteza comparativa do crítico, se seu ponto de partida for, por exemplo, uma abordagem temática. Não há comparação que resista a uma abordagem dessa natureza. Portanto, valendo-se dos princípios semióticos da linguagem e do assessorado pelos demais atributos, tais como os estilísticos e estruturais, daí sim, pode-se falar de uma abordagem comparativa que faça provocar um efetivo efeito iluminador entre as obras abordadas. Apesar de o trabalho crítico não lidar com verdades,mas com validades – para voltarmos sempre às mágicas concepções de Roland Barthes –, ele tem sim a função maior de mostrar caminhos de sentidos desse jogo de validades que determina o discurso crítico. Valendo-me de um exemplo que seria elementar, mas acreditando que nisso reside a função crítica, isto é, seja demiurgo que elucide ao leitor a natureza do objeto, seria educativo aproximarmos duas obras conhecidas da Literatura Brasileira como O Quinze de Raquel de Queiroz e Vidas Secas de Graciliano Ramos, tantas vezes confundidas como se pertencessem ao mesmo paradigma temática e estilisticamente. Seria crucial a relevância de um estudo como esse que recolocasse as obras em seus devidos lugares ou nos seus degraus de relevância literária.

 

A referencialidade do enredo da obra de Raquel de Queiroz e a fecundidade expressiva e crítica do universo de Graciliano Ramos revelariam, com espanto, a abissal distância entre as duas obras. A aproximação de obras de naturezas distintas que se aproximam por motivos alheios às escavações semióticas e estilísticas é, no mínimo, perigosa. A possibilidade de equívocos é grande se não houver por parte do crítico uma clara intenção elucidativa e uma prévia consciência desses perigos. Esses equívocos são muito frequentes na crítica universitária, nas dissertações de Mestrado e nas teses de Doutorado, em que as mais variadas e inapropriadas aproximações comparativas são realizadas graças a meras similaridades temáticas ou de uma famigerada possibilidade intertextual entre obras.

 

Para não ficarmos apenas nas assertivas genéricas, citemos algum exemplo mais elucidador. Se tomarmos para analisar comparativamente obras memorialistas, tais como Baú de Ossos e outras de Pedro Nava e Em Busca do Tempo Perdido,de Marcel Proust, sem ter uma prévia dimensão do que se pretende demonstrar com esse exercício crítico de pesos e de medidas, vamos acentuar os desequilíbrios entre as obras e nada restará de similar a não ser a memória, se for mal compreendida ou mal interpretada. Aproximar a ficção de Pedro Nava aos meandros divagantes de Marcel Proust não nos parece muito frutífero para a iluminada relação possível entre obras literárias. Um estudo crítico dessa natureza acaba cometendo duplo desserviço: conferir à obra de Nava o que não existe a não ser memorialismo autobiográfico e à obra de Proust um procedimento denegrido nos movimentos estéticos construídos pela memória involuntária.

 

Também não é trabalho da Crítica buscar na obra discutida um repositório de alusões e de inserções que a obra trabalhou dentro de seus propósitos inventivos e construtivos. Assim, são inócuos trabalhos que vão mostrar as marcas de Shakespeare. Consiste na mais pura constatação do óbvio ilustrado por uma falsa retórica crítica. Nesse sentido, apontaríamos inúmeras teses ou artigos de natureza “ilusionista” convencidos de terem realizado um exercício crítico. Na verdade, se concordamos com W. Iser que a obra literária consiste num objeto intencional cheio de vazios e que seu estatuto é totalmente artificial, temos de parar de acreditar na Literatura como um sistema de significação intencionalmente dirigido.

 

                                                                                                        * * *

 

O signo e as questões que o envolvem conduzem às implicações intersemióticas das mais variadas vertentes críticas. O que se deve considerar relevante é a competência semiótica de ampliação dos limites do signo em manifestações poéticas e estéticas determinantes para a projeção do trabalho inventivo. Ao dizer isso, temos de levar em conta os vários sistemas ou os sistemas plurais de articulação da linguagem em suas nuanças expressivas.

 

De uma fotografia analógica para uma pintura acadêmica e de uma pintura acadêmica para uma pintura não figurativa de Paul Klee ou Wassily Kandinsky, temos uma gradação de expansividade do signo icônico que transforma, consideravelmente, a potencialidade do signo. No caso do poema ou do discurso poético de intensividade relevante, o mesmo procedimento ocorre. Entretanto, dada a natureza do signo linguístico possuidor de uma necessária relação entre significante e significado ou entre expressão e conteúdo, as dimensões de expansividade do signo passam por processos de plasmação da forma para a constituição do signo poético. Este pode atingir gamas de higienização dos resíduos semânticos do mundo em detrimento de sua limpeza na passagem da língua um para a dois, dentro do processo de realização que se coloca entre a instância um (composição) e a instância três (modulação).

 

Ao atingir uma intensividade elevada, no processo de depuração do signo verbal, o discurso poético aponta para o que poderia ser chamado de signo complexo. Nessa instância de formulação, tal processo possibilita uma elevação e enlevação do signo verbal a uma condição de signo icônico na condição diagramática. O discurso poético de excelência faz “ver”, não no sentido referencial e analógico do termo, mas no diagramático e abstrato. Para que isso seja possível, o signo não pode resistir à construção de um objeto poético, mas os estilhaços de signo devem conduzir a esse objeto. A isso, a essa construção semissimbólica do objeto, podemos denominar, valendo-me de uma expressão de Gérard Genette, de processo de bricolagem. Esse processo é determinante para qualquer tipo de inversão artística e alheio a qualquer procedimento que dele não se valha para o ato de criação.

 

Valer-se dos resíduos dos signos, do esfacelamento da linguagem para gerar um novo objeto é o caminho irreversível para a criação. Em alguns casos, o artista se vale desse processo de maneira mais explícita ou com uma intenção mais determinante. O artista se apodera de rudimentos de obras de outros artistas ou de pedaços de obras que invadem a sua composição e acaba por gerar o “objeto estranho” que é a nova obra. Se os procedimentos críticos que envolvem a Literatura Comparada, suas relações com o pensamento inventivo e construtivo são decisivas para a compreensão da natureza da literatura dos graus de literariedade, mais ainda se pode dizer das relações perquiridoras entre a literatura e outros sistemas semióticos.

 

A busca das relações homológicas entre poesia e pintura, por exemplo, é sem dúvida um caminho profícuo para as investigações críticas. No plano da criação estética, sobretudo nos processos de invenção da Literatura e da pintura, muitos são os artistas que confessaram e confessam que seu trabalho se iluminou muito mais de outras formas de manifestação artística do que a que lhe é própria. Para ilustrar, mesmo que pouco, o que estamos dizendo, citemos um exemplo determinante e bem conhecido desse fenômeno.

 

O poeta brasileiro João Cabral de Melo Neto, em várias de suas entrevistas, afirmou que sua obra foi influenciada ou iluminada muito mais pela arte arquitetônica e pictórica do que por trabalhos poéticos. É claro que uma obra das dimensões da poesia do poeta pernambucano recebeu iluminação mais ou menos intensa de outras poesias que embasaram sua formação de leitor. Entretanto, o procedimento estrutural da obra de Cabral trouxe da arquitetura de Joaquim Cardoso e de Le Corbusier e da pintura de Joan Miró elementos norteadores de seu processo construtivo que desvendaram o diferencial de sua poesia.

 

No mesmo sentido, mas com natureza diferente por se tratar de outro código de linguagem, Joan Miró, em alguns momentos de sua vida e de sua invenção plástica, também aludiu ao seu processo inventivo, demonstrando ter recebido muita influência de poetas com quem conviveu para buscar os movimentos de sua arte. Joan Miró chegou a ir ao Oriente, na década de 1960, para conhecer a poesia chinesa, suas imagens sincréticas, para encontrar o que denominava sua visão do poético. Poderíamos aqui comentar muitos casos dessa natureza que muito bem viriam ao encontro da questão que viemos discutindo, mas essas notações críticas sobre invenção e iluminação de uma arte sobre a outra. Essas considerações atuaram apenas como uma espécie de “desvio de dentro” para voltarmos ao ponto que me trouxe a este discurso: questões da crítica. Se, sob o ponto de vista da invenção são tão íntimas as relações entre poesia e pintura, isso se mantém quando passamos para a questão das relações críticas homológicas.

 

Um dos fundamentos mais relevantes para que se realize o estudo da natureza de uma determinada obra literária é estudá-la à luz de uma obra plástica. As diferenças entre os sistemas semióticos geram uma forma de perquirição crítica como se fosse necessária uma abordagem em espelho transverso. Nas diferenças, emergem as convergências determinantes da natureza das obras. É evidente que a escolha dos objetos a serem lidos e analisados faz toda a diferença. Isso porque o tipo de relação entre elas deve ser de categoria homológica e nela as profundas analogias de raízes conduzem a efetivação de um estudo comparativo profícuo. Uma leitura crítica da obra Vidas secas, de Graciliano Ramos, pode se tornar mais elucidativa se for realizada tendo como procedimento homológico a obra neoexpressionista de Candido Portinari e que essa relação não tem fio de prumo à tematização similar entre as duas obras.

 

O estudo de uma obra literária com base na sua retórica e nos seus meandros retóricos inventivos pode se defrontar com surpresas ao se aproximar de uma obra pertencente ao código pictórico, composto por um procedimento de economia tão caro ao universo planar bidimensional. Talvez a maior surpresa que se possa depreender desse universo de aproximação seja a obra literária acabar apontando-se com o próprio dedo e reconhecendo sua identidade enquanto obra e enquanto, obviamente, linguagem. Esse atributo é determinante para o exercício crítico-analítico da obra nas suas camadas linguísticas e prosódicas e representativas da literariedade tão eficaz nos propósitos da invenção. Nesse sentido, voltando ao início deste texto, o crítico se valendo de inúmeros procedimentos composicionais pode e deve atuar como demiurgo entre o discurso artístico e o pensamento comum e abrir, para dizer com Baudelaire, várias janelas que ampliem a visão do leitor diante do texto.

 

 

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1 Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus de São José do Rio Preto (Unesp/SJRP). agnus.fenix@gmail.com

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