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GUILHERME DE ALMEIDA: O HOMEM ACOMPANHADO DO TEATRO

Renata Cazarini de Freitas [1]

 

Faceta ainda praticamente desconhecida do poeta Guilherme de Almeida (1890-1969) é a do seu interesse prolongado e persistente pelo teatro. Como tradutor, sim, já é conhecido, por exemplo, pelo aclamado resultado da transcrição da Antígone, de Sófocles, do grego antigo para o português brasileiro, em 1952. Mas não só. Em 1950, na sua estreia como tradutor de Huis Clos, de Jean-Paul Sartre, simultaneamente à encenação da peça que causou polêmica, já era comercializada a edição impressa de Entre quatro paredes.

O repertório de traduções teatrais do poeta de Campinas (SP) não se esgota aí. Também foi publicada sua tradução em parceria com Werner J. Loewenberg de The Importance of Being Earnest, de Oscar Wilde, vertida como A importância de ser Prudente. As três peças foram encenadas pela companhia do finado Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), projeto que buscou estabelecer em São Paulo uma dramaturgia de excelência entre 1948 e 1965. Outras duas peças traduzidas por ele e encenadas no TBC permanecem inéditas em livro: Lembranças de Bertha, de Tennessee Williams, e Eurídice, de Jean Anouilh. Por outro lado, o poeta traduziu e publicou, sem que se tenha notícia de sua montagem, a peça História de uma escada, de Antonio Buero Vallejo. Mais interessante ainda é saber da tradução inédita em livro e no palco – até onde se tem notícia – de Orfeu, de Jean Cocteau.

Tradução de teatro era para ele uma atividade intelectual de autoria, como se pode depreender do título que planejou dar a um livro nunca editado, mas previsto com a Companhia Editora Nacional: “Meu teatro dos outros”, conforme documento do Fundo Guilherme de Almeida, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Na década de 1950, o poeta foi também tradutor dos versos de duas peças: Na festa de São Lourenço, do padre José de Anchieta (parte em tupi), e Os perigos da pureza, de Hugh Mills, cuja tradução da prosa em inglês coube a Gert Mayer. Em 1966, 3 anos antes de sua morte, acalentava o plano de traduzir Le roi se meurt, de Eugène Ionesco, como “O rei está à morte”. Não há vestígios, no entanto, de que o tenha feito.

Este levantamento evidencia como Guilherme de Almeida, entre 1948 e 1965, data em que se desliga da presidência da Sociedade Brasileira de Comédia (SBC), esteve frequentemente envolvido nos bastidores da produção teatral, suprindo de dramaturgia internacional o palco do “teatrinho da Rua Major Diogo”, como era chamado o prédio que alojava o TBC, porque acomodava apenas 365 lugares.

Mas a história de Guilherme de Almeida com o teatro antecede isso tudo. Em 1915, ele já havia escrito em parceria com Oswald de Andrade uma peça em francês que, diante da recepção estimulante que recebera em leituras públicas e na imprensa, motivou a criação de outra, também em francês, ambas editadas no livro de estreia dos dois autores: Mon Coeur Balance e Leur âme. Em 1917, os dois jovens escritores paulistas já estavam listados entre os “cultores deste difícil gênero”, conforme o Correio Paulistano, de 19 de fevereiro de 1917. Define-se a partir daqui o primeiro período de envolvimento do poeta com a dramaturgia, que se estende até 1949, quando compõe O homem só, que ele qualifica de “um momento teatral”. Nesse intervalo, criações de Guilherme de Almeida nem sempre chegaram ao palco.

A primeira cena do segundo ato de Leur âme até recebeu uma leitura dramática, não propriamente uma encenação, em 16 de dezembro de 1916, por atores franceses, no Teatro Municipal de São Paulo. No Jornal de Notícias de 8 de janeiro de 1950, Oswald de Andrade lembrava que esse episódio havia ocorrido “com a maior e mais justa indiferença do público e da crítica”. Oswald devotou-se depois a um teatro classificado como “da ruptura” por Sábato Magaldi (2004), crítico que admitiu o reconhecimento tardio dessa obra dramatúrgica – à qual hoje se atribui lugar no cânone dramatúrgico brasileiro, com O rei da vela (escrita em 1933, encenada só em 1967), O homem e o cavalo (1934) e A morta (1937).

Com Guilherme de Almeida não aconteceu um resgate. Pior até, sua trajetória no teatro ainda mal documentada leva a análises imprecisas como esta, de Eudinyr Fraga, em “As peças em francês”, que prefacia o volume Mon coeur balance; Leur âme (2003, p.15): “Quanto a Guilherme de Almeida, se não abandonou o interesse pelo palco (veja-se a bela tradução de Antígona, de Sófocles, encenada em 1952, no TBC), não pareceu preocupar-se depois em expressar-se teatralmente”.

Na verdade, pode-se delinear uma trajetória de 50 anos em que o poeta esteve acompanhado do teatro: ele traduziu, escreveu e foi agente cultural, tendo presidido, por exemplo, a Sociedade dos Artistas Amadores de São Paulo ou Sociedade de Amadores Ingleses, que encenava peças em inglês, por mais de 20 anos. No TBC, assumiu diversas funções executivas, além de ter sido seu conselheiro literário quando, em 1950, concebeu com o diretor italiano Luciano Salce o “Teatro da Segunda-feira”, programação que incluiria peças menos comerciais, mais excepcionais justamente num dia estranho à rotina teatral: “tudo o que do teatro tiver a substância, mas não a aparência”, como consta do programa de número 10 do TBC, que pode ser consultado na Casa Guilherme de Almeida. Numa listagem que antecipa o repertório previsto, apenas parcialmente executado, pois a iniciativa teve curta duração, encerrando-se em 1954, interessa notar que o poeta se colocou ao lado de Luigi Pirandello, Maurice Maeterlink e, para ficar com um brasileiro, Martins Pena. Ele pretendia que fossem montados dois de seus textos: Narciso e O homem só.

O poema dramático “A flor que foi um homem (Narciso)” tinha sido escrito em 1921 e publicado 4 anos depois, e seu exemplar princeps leva dedicatória de Guilherme a Oswald, datada de 1º de outubro de 1925: “Para o Oswald – o homem que é um flor – esta lembrança velha de nossa mocidade”. Ainda assim, na visão de Guilherme de Almeida, o poema dramático de uma velha lembrança continuava, 25 anos depois, atual o suficiente para ter sua estreia no palco do TBC. Esse texto foi editado depois, no tomo III da coletânea “Toda a poesia”, em 1ª edição de 1952, precedido de “Scheherazada (um ato em versos)”, que havia sido escrito em 1920 e recebera, no ano seguinte, menção honrosa no concurso de teatro da Academia Brasileira de Letras – “a Grande Tertúlia”, como a chamou Guilherme de Almeida, da qual veio a se tornar membro em 1930. “Scheherazada” foi encenada por três dias no início de agosto de 1939, no Teatro Sant’Anna, em São Paulo, pela Companhia Rey Colaço-Robles Monteiro, do Theatro Nacional Almeida Garrett, de Lisboa.

O homem só, texto dramático em prosa, inédito no palco e em livro, ao qual se teve acesso por meio de um datiloscrito depositado no Fundo Guilherme de Almeida da Unicamp, toma como mote um poema em prosa de Charles Baudelaire, poeta francês que o paulista havia traduzido em 1944 e editado como Flores das Flores do mal, uma seleção de 21 dos 105 poemas que compõem Les Fleurs du mal. O à vontade de Guilherme de Almeida com a poesia de Baudelaire é grande, e ele escolhe como epígrafe para O homem só uma frase de “A une heure du matin”, do livro Pequenos poemas em prosa ou O spleen de Paris. A epígrafe: “...et je ne souffrirai plus que par moi-même” (“...e eu não sofrerei a não ser por mim mesmo”).

A curta peça de um ato em duas cenas apresenta um misantropo que vê seu dia desperdiçado pelo contato com o alheio até que trava com a própria sombra um embate em busca da solidão total. Uma vez que o poema em prosa de Baudelaire leva o título de “À uma hora da manhã”, vale notar que a primeira fala do texto de Guilherme de Almeida, na boca do personagem denominado apenas “O homem”, é: “Duas e dez! Uff! Um dia a menos numa vida a mais...”. O misantropo intelectual de Baudelaire também havia exclamado: “Ufa! Acabou mesmo?” Mas essa proximidade não traz tanta surpresa porque, além da epígrafe, Guilherme de Almeida menciona no texto seu poeta modelo. Além disso, traduz um período em prosa do francês numa estrofe de quatro versos alexandrinos com rima interpolada. O trecho:

 

Mas agora... Agora estou como Baudelaire, no fim daquele seu dia inútil, livre da tirania da face humana, mas sem nem sequer poder recitar a oração que ele recitou:

 

“E a Vós, Senhor meu Deus, humildemente rezo:

Dai-me o dom de fazer algum verso feliz

Que me possa provar que não sou dos mais vis,

Que não sou inferior àqueles que desprezo!”

 

A prece, em francês, que arremata o poema de Baudelaire:

 

...et vous, Seigneur mon Dieu! Accordez-moi la grâce de produire quelques beaux vers qui me prouvent à moi-même que je ne suis pas le dernier des hommes, que je ne suis pas inférieur à ceux que je méprise!

 

Na peça brasileira, o personagem principal não é um poeta, mas certamente Guilherme de Almeida, mesmo escrevendo prosa dramática, não deixa de sê-lo, como revela a rubrica que antecede a cena II. Assim:

 

Ao estalido do interruptor elétrico, que acende a lâmpada, uma risadinha de cristal tine, fina, pelo aposento. O Homem tem um susto leve e espalha os olhos em torno, procurando. Enroscada no tapete cor de areia, a Sombra, a sua própria sombra, que a lâmpada projetou, é um ser familiar, íntimo, a seus pés.

 

Notem-se as aliterações em “l” e em “r” e a personificação da Sombra (prosopopeia), único interlocutor do Homem, em duas construções poéticas de três elementos: “uma risadinha de cristal tine, fina, pelo aposento” e “é um ser familiar, íntimo, a seus pés”.

Tanto Narciso como O homem só flertam com uma vertente metafísica do amor que, porém, se insinua carnal. Enquanto a primeira peça bebe na fonte da mitologia bucólica, a segunda digere a realidade tumultuosa da vida urbana. As duas esferas – do mítico e do real – convergem noutro texto dramatúrgico escrito por Guilherme de Almeida em parceria com o ator Jaime Barcelos em 1939. O estudante poeta, uma biografia literária sobre Álvares de Azevedo, inédita em livro, teve ao menos três leituras públicas no primeiro semestre de 1940 e se planejava encená-la no final do mesmo ano com atores amadores da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, cujas arcadas o poeta de Lira dos vinte anos frequentara.

A peça tem início com Álvares de Azevedo chegando a São Paulo em 1848 acompanhado de Satã. O texto, recuperado no Fundo Guilherme de Almeida da Unicamp, tem 48 páginas datilografadas, não apresenta título e está distribuído em seis quadros ou momentos dramáticos: São Paulo (1848), As arcadas (1850), O corvo (1850), O poeta, A rótula, O encontro (1852). Pela imprensa da época, foi elogiado e classificado como “teatro do espírito”. Muitos anos depois, em 31 de outubro de 1957, a coluna teatral estampada no jornal Última Hora, supostamente de autoria do ator e diretor de teatro e cinema Raul Roulien, sob o título “Guilherme de Almeida, o teatrólogo...”, ainda fazia defesa contundente da peça, clamando por sua montagem: “Nunca, numa peça teatral (pese à copiosa literatura ‘victorian’ ou dos ‘New England eschemes”) a Morte, musa e amante do Poeta, foi enquadrada com tão elevado senso estético, cênico e (se possível) terrivelmente lírico”. Roulien afirma que tinha tentado montar o texto em 1942, mas fracassara por falta de recursos públicos.

Mais três referências comprovam a amplitude do envolvimento de Guilherme de Almeida com o palco. Em 1928, escreve o segundo de três quadros que compõem o sainete Um conto da carochinha, uma comédia de costumes em parceria com Cornélio Pires e Oduvaldo Vianna e música de Marcello Tupinambá, encenada em São Paulo e, no ano seguinte, no Rio de Janeiro, então capital do país. Em 1936, compõe letras para a música que Dinorá de Carvalho cria para a fantasia em três atos Noite de São Paulo, de Alfredo Mesquita, montada na capital paulista. Em 1946, elabora o argumento do balé Yara, com coreografia e libreto do tcheco Ivo Vania Psota, música de Francisco Mignone e figurinos e cenários de Cândido Portinari, na performance do Original Ballet Russe.

Numa pesquisa desta natureza, sempre é possível voltar mais para trás. A iniciação de Guilherme de Almeida no teatro pode remontar à infância, segundo relato publicado em artigo de jornal sem data precisa (1952?) e fonte indeterminada (vespertino paulista?): o interesse teria sido motivado pelo pai do poeta, que o fazia ler pela manhã e comentar à tarde peças que companhias francesas encenariam à noite no Teatro Municipal de São Paulo. Se isso parece algo fantasioso, é, contudo, possível asseverar a partir de documentos a companhia que o teatro fez ao poeta durante toda sua vida adulta.

 

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Guilherme de. Toda poesia. Tomo III. 2.ed. São Paulo: Livr. Martins Ed., 1955.

BAUDELAIRE, Charles. Pequenos poemas em prosa. São Paulo: Hedra, 2009.

FRAGA, Eudinyr. “As peças em francês”. In: ANDRADE, Oswald de; ALMEIDA, Guilherme de. Mon coeur balance; Leur âme. São Paulo: Globo, 2003.

MAGALDI, Sábato. Teatro de ruptura: Oswald de Andrade. São Paulo: Global, 2004.

 

[1] Pesquisadora e professora de língua e literatura latina na Universidade Federal Fluminense (UFF).

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