Por Jaa Torrano
Lendo as trinta e duas tragédias supérstites de Ésquilo, de Sófocles e de Eurípides como documentos literários da permanência e transformações do pensamento mítico em Atenas no século V a. C., a questão com que nos deparamos é como ter acesso a essa forma de pensamento mítico documentado nessas tragédias.
Para viabilizar-nos o acesso à unidade de visão de mundo – comum da tragédia e da tradição poética grega, da épica à poesia coral – lemos as trinta e duas tragédias na intersecção de três disciplinas: História da Grécia Clássica, Filosofia Antiga e Poesia.
História porque se trata de um documento histórico, produzido pelo pensamento mítico grego arcaico e clássico; Filosofia porque se trata de formas do pensamento originais e contemporâneas do surgimento da Filosofia na Grécia; mas, Poesia, por quê?
Poesia porque o documento de que se trata é literário e o elemento rítmico que estrutura o seu texto é o verso, e porque por uma felicidade do destino há algo comum à Poesia (tal qual a entendemos nós hoje) e ao pensamento mítico, a saber, o uso da imagem, que constitui um traço fundamental tanto da Poesia quanto do pensamento mítico.
O que hoje entendemos por arte da poesia tem um núcleo comum com o pensamento mítico, a saber, a imagem.
A imagem — neste sentido platônico de todo e qualquer objeto de uma percepção sensorial — constitui a matéria-prima tanto da poesia como do pensamento mítico: a poesia trabalha preponderantemente com imagens, mas o pensamento mítico trabalha única e exclusivamente com imagens e, mediante a elaboração de imagens, cumpre na tragédia a função de pensar as relações de poder na perspectiva da cidade-estado de Atenas do século V a.C.
Essas relações de poder previstas no pensamento mítico incluem não só o poder que organiza o estado e que nele se compartilha entre cidadãos, mas ainda o poder que organiza o mundo físico e que impõe os limites que determinam e definem as atribuições e assim o ser e a ação dos Deuses e dos mortais, o que implica uma hierarquia de participação no ser e por isso mesmo tanto na verdade quanto no conhecimento.
A visão de mundo própria da tragédia tem a unidade de sua estrutura na dinâmica da dialética icástica pré-filosófica em que se confundem e se distinguem quatro pontos de vista correspondentes ao dos homens mortais, ao dos heróis, aos Numes e aos de Deuses: um diálogo entre os diferentes graus tradicionais gregos de participação em ser, em verdade e em conhecimento. Em vista desse diálogo público com essas tradicionais instâncias do divino, a linguagem da tragédia é formal, solene e elevada como conviria à linguagem pública e à interlocução com os Deuses.
O tradutor de tragédias brasileiro hoje se depara eventualmente com o mísero problema de como traduzir o registro trágico da linguagem formal, baseada na distinção entre diversos graus de participação em ser, em verdade e em conhecimento, diante de uma situação cultural em que se ignora tanto a variação quanto a variedade dos graus e nuances de formalidade da linguagem?
A meu ver, o primeiro recurso imediatamente disponível para resolver esse problema é a recuperação do uso correto do sistema dos pronomes pessoais no singular e no plural das três pessoas: eu, tu, ele, nós, vós, eles, o que no mínimo corresponde às distinções estruturais do sistema pronominal grego clássico. As distinções estruturais marcadas nos pronomes e nos verbos sustentam o registro formal, solene e elevado da linguagem, mas também sugerem, por analogia, as variações dos graus míticos previstos de participação em ser, em conhecimento e em verdade, correspondentes aos mortais e às instâncias do divino distintas dos mortais.
A apreensão e compreensão desse diálogo múltiplo – entre os diferentes graus tradicionais de participação em ser, em verdade e em conhecimento – depende de se compreender a noção e uso da imagem não só no pensamento mítico, mas também na apropriação trágica do pensamento mítico. A associação das imagens à noção mítica de “Deus(es)” instaura distinções hierárquicas entre as imagens, bem como a associação das imagens míticas às diversas noções dos diversos Deuses confere às imagens o dinamismo de remeterem a algo que as ultrapassa.
A estrutura dinâmica das imagens míticas distintivas e remissivas dos diversos aspectos fundamentais do mundo se incorpora, se reproduz e se registra nos documentos produzidos pelo pensamento mítico grego, entre os quais as trinta e duas tragédias supérstites da época clássica, onde investigamos as formas inteligíveis da estrutura dinâmica do pensamento mítico.
Essas formas inteligíveis é que a nós, leitores hodiernos da tragédia antiga, nos dá acesso à visão de mundo trágica e nos permite compreender a referência dos Deuses e assim a nossa leitura das trinta e duas tragédias se tornar contemporânea dos Deuses, dos Numes e dos heróis de Atenas clássica.
A forma inteligível, que investigamos nas trinta e duas tragédias, é relacional e dinâmica, ela reside na séptupla relação 1) entre as funções sintáticas das palavras nos versos, 2) entre essas funções sintáticas e os elementos sensíveis que a afetam, tais como paronomásias, aliterações, ritmo e medida, 3) entre ambos esses – funções sintáticas e elementos sensíveis – e os elementos inteligíveis que os informam, tais como as noções próprias da cultura grega, 4) entre um verso e outro e assim entre os versos, 5) entre conjuntos de versos, 6) entre as partes da tragédia e 7) entre as partes e o todo da tragédia.
Essa forma relacional e dinâmica, inteligível, é a via a ser percorrida pela inteligência da tragédia – e neste caso “da tragédia” é tanto adjunto adnominal quanto complemento nominal, ou seja, neste caso o genitivo é tanto subjetivo quanto objetivo – e, portanto, essa dupla inteligência da tragédia discerne e arbitra o que incluir e o que excluir do itinerário dessa via cujo percurso a constitui em sua duplicidade de objetividade e de subjetividade, subjetividade cujo sujeito não é mais somente o tradutor, mas, sim, também a tragédia mesma a ser traduzida.
A relação entre as funções sintáticas das palavras no verso trágico, além da função dianoética que lhe é inerente enquanto integrante da forma inteligível da tragédia, assume por vezes uma função mimética, que ocorre quando a distribuição nas palavras no verso não só anuncia, mas antes reproduz a configuração da realidade. Neste caso, a linguagem constitui não só um instrumento de análise da realidade, mas também um elemento mimético de reprodução icástica da realidade.
A apreensão da forma inteligível, ao se completar, tem o caráter sinóptico e concreto da intuição, mas a única prova possível de se apreender a forma inteligível é a compreensão imediata consequente e consecutiva da própria apreensão.
Feita essa ressalva a título de aviso aos navegantes, embarquemos em busca das formas inteligíveis próprias do pensamento mítico e documentadas na tragédia Filoctetes de Sófocles. O que temos mostrado como propósito e proposta de tradução, exemplifiquemos com o percurso através da seleção de momentos ilustrativos, do prólogo ao êxodo.
No prólogo de Filoctetes, Odisseu primeiro se localiza com Neoptólemo na ilha de Lemnos e conta que dez anos antes aí abandonou Filoctetes, porque a moléstia dele parecia insuportável a todos os demais, e agora voltava à ilha com um ardil para capturá-lo.
ODISSEU:
Esta é a orla da circunfluente Lemnos
terra intacta e inabitada de mortais
onde, ó Neoptólemo, filho de Aquiles,
o mais forte dos gregos, eu um dia
abandonei o malieu filho de Peante 5
por ordem dos reis de assim fazer,
supurado o pé de corrosiva moléstia,
quando nem libação nem oferendas
tocávamos tranquilos, mas ele sempre
com rude tumulto tinha o campo todo, 10
gritando, gemendo. Mas por que devo
dizê-lo? Não nos convêm longas falas,
não me saiba aqui nem perca eu todo
o ardil com que creio capturá-lo rápido.
Mas já tua tarefa é o restante serviço, 15
espiar onde aqui está bifronte pedra
tal que no frio se dá dupla incidência
do Sol, e no estio o sopro do vento
envia Sono pela ambidestra morada.
Pouco abaixo à esquerda talvez vejas 20
fonte potável, se é que está saudável.
Aproxima-te silente e indica-me se
tem este mesmo lugar, ou se mudou,
para que tu ouças o resto das razões
e eu explique e vá o comum de ambos. 25
Neoptólemo, embora em missão militar subordinado a Odisseu, tem opinião própria de como deve e como não deve agir:
NEOPTÓLEMO:
Eu, se as palavras não tolero ouvir,
filho de Laerte, tenho horror aos atos.
Sou nato para não agir por arte má,
nem eu, nem o meu pai, ao que dizem.
Estou pronto a levar o varão à força 90
e não por dolo. Com uma só perna
não nos vencerá a nós tantos à força.
Na missão de teu cooperador, porém,
temo ser dito traidor. Ó rei, prefiro
falhar por agir bem a vencer por mal. 95
Odisseu convence Neoptólemo a cooperar na trama de mentir para Filoctetes, por ser a mentira neste caso o único meio de preencher as condições em que Neoptólemo poderia conquistar a glória de ter conquistado Troia:
ODISSEU:
Filho de nobre pai, eu mesmo jovem
tinha a língua inativa e o braço ativo,
agora posto à prova vejo que a língua
dos mortais, não os braços, guia tudo.
NEOPTÓLEMO:
A que me exortas senão a falar falso? 100
ODISSEU:
Eu te digo pegar Filoctetes com dolo.
NEOPTÓLEMO:
Por que dolo mais do que persuasão?
ODISSEU:
Não se persuade nem pegarias à força.
NEOPTÓLEMO:
Tão terrível confiança ele tem na força?
ODISSEU:
Setas inevitáveis portadoras de morte. 105
NEOPTÓLEMO:
Não se ousa nem se aproximar dele?
ODISSEU:
Não, sem pegar com dolo como digo.
NEOPTÓLEMO:
Não consideras mesmo vil falar falso?
ODISSEU:
Não, se a mentira produz a salvação.
NEOPTÓLEMO:
Como se encarar se ousar dizer isso? 110
ODISSEU:
Se fazes proveito, não cabe hesitar.
NEOPTÓLEMO:
Que proveito meu é sua ida a Troia?
ODISSEU:
Somente estas flechas tomam Troia.
NEOPTÓLEMO:
O vencedor, como dizes, não sou eu.
ODISSEU:
Nem tu sem elas, nem elas sem ti. 115
NEOPTÓLEMO:
Elas seriam de se caçar, se é assim.
ODISSEU:
Se fizeres isso, levas duas dádivas.
NEOPTÓLEMO:
Quais? Ciente não recusaria fazer.
ODISSEU:
Serias dito ser ambos hábil e bravo.
NEOPTÓLEMO:
Seja! Faça! Que se vá todo pudor! 120
ODISSEU:
Tu te lembras do que te aconselhei?
NEOPTÓLEMO:
Bem sabe, uma vez que concordei!
A hierarquia militar põe Neoptólemo sob as instruções de Odisseu e o coro sob as de Neoptólemo. O coro de marinheiros, mais velhos que Neoptólemo e leais a ele, desde as primeiras palavras se empenha na trama contra Filoctetes e na lealdade a Neoptólemos pela participação deste em Zeus:
CORO:
Senhor, o que hóspede em hóspeda terra devo EST.1
calar, ou o que devo dizer ao varão suspicaz? 136
Dize-me,
pois arte supera outra arte
e siso outro siso junto a quem
tem o divino cetro de Zeus. 140
A ti, filho, veio todo este
poder ogígio, diz-me isto:
como se deve te auxiliar.
NEOPTÓLEMO:
Agora, o lugar nos confins
talvez queiras ver onde jaz, 145
olha! Ousa! Quando vier
o terrível rueiro deste teto,
segue sempre minha mão
e tenta prover o presente!
O encontro de Filoctetes com Neoptólemo e o coro é amistoso e, para Filoctetes, animador:
FILOCTETES:
Iò hóspedes!
Quem sois vós vindos com remos navais 220
a esta terra sem bom porto nem habitada?
De que pátria ou tribo afinal eu acertaria
se vos dissesse? O tipo de vossas vestes
parece grego, as mais amáveis para mim.
Quero vos ouvir a voz. Não me receeis 225
nem vos espante meu aspecto selvagem.
Apiedai-vos de varão infausto, sozinho,
abandonado e sem amigos, arruinado,
falai, se vós aqui viestes como amigos!
Mas respondei, pois não nos convém 230
eu disso vos impedir, nem vós a mim.
NEOPTÓLEMO:
Mas, ó forasteiro, sabe isto primeiro:
somos gregos, pois o queres saber.
FILOCTETES:
Ó caríssima palavra! Pheû, receber
saudação de tal varão em longo tempo! 235
Que te traz, filho? Que dever te incita?
Que impulso? Qual caríssimo vento?
Diz-me tudo isso para saber quem és!
NEOPTÓLEMO:
Eu sou nato da circunfluente Ciro.
Navego para casa. Dizem-me filho 240
de Aquiles, Neoptólemo. Eis tudo.
FILOCTETES:
Ó caríssimo filho do pai, ó caro solo,
ó rebento do ancião Licomedes, que
missão te traz a esta terra? Donde vens?
NEOPTÓLEMO:
Desde Ílion agora sim estou singrando. 245
Neoptólemo ouve a história de Filoctetes e relata falso ultraje de Odisseu e dos Atridas contra si como razão para deixar Troia e voltar para casa. Filoctetes considera que Neoptólemo foi, como ele, ultrajado por Odisseu e os Atridas, ouve as notícias de Troia e suplica formalmente por piedade e salvação. Neoptólemo finge relutância, mas por fim concorda com o pedido de Filoctetes ao ser reiterado por aparente compaixão do coro:
CORO:
Apieda-te, senhor! Provações
de muitas dores insuportáveis
contou. Não as sofram os meus!
Se odeias, senhor, Atridas amargos, 510
eu tornaria o malfeito daqueles
para este varão o grande ganho
e para onde ele quer 515
no ágil rápido navio
escoltaria para evitar
a retribuição dos Deuses.
NEOPTÓLEMO:
Vê que agora não estejas prestativo,
mas saciado do convívio do distúrbio, 520
não te mostres mais o mesmo ao falar.
CORO:
Nunca, não há como possas um dia
com justiça afrontar-me essa afronta.
NEOPTÓLEMO:
Seria infame mostrar-me ao forasteiro
inferior a ti no empenho em seu favor. 525
Se assim, naveguemos! Ande ligeiro,
pois o navio conduzirá e não negará.
Queiram os Deuses nos salvar desta
terra para onde desejamos navegar!
FILOCTETES (rejubila com a falsa promessa de Neoptólemo):
Ó caríssimo dia, dulcíssimo varão, 530
caros marinheiros, como vos seria
claro em ato que me fizestes vosso?
Vamos, ó filho, depois de saudarmos
a não-morada moradia para que saibas
de que vivia e que forte coração tive. 535
Creio que ninguém mais senão eu
ao só ver de relance suportaria isto,
eu aprendi sob coerção aturar males.
Parecem prontos para partir, quando o coro avista a aproximação de dois varões, um marinheiro de Neoptólemo e um desconhecido. O desconhecido se apresenta como navegador profissional e traz notícias de que o velho Fênix e os filhos de Teseu partiram de Troia em busca de Neoptólemo, e de que Odisseu e Diomedes partiram em busca de Filoctetes. Com a falsa promessa de resgatá-lo para a pátria, Neoptólemo ganha tanta confiança de Filoctetes, que este lhe permite tocar o arco herdado de Héracles:
NEOPTÓLEMO:
Essas as ínclitas flechas que agora tens?
FILOCTETES:
Não há senão estas que seguro nas mãos. 655
NEOPTÓLEMO:
Há como ter a contemplação de perto,
segurar e venerar tal como a um Deus?
FILOCTETES:
Teu será, ó filho, não só isso mas ainda
o que mais dos meus te possa ser útil.
NEOPTÓLEMO:
Deveras quero, assim tenho o desejo: 660
se lícito, gostaria; se não, deixa estar.
FILOCTETES:
Falas com piedade, e é lícito, ó filho,
tu que sozinho me deste ver esta luz
do sol, que me deste ver o solo de Eta,
o pai ancião e os meus e quando estava 665
eu sob meus inimigos tu me resgataste.
Confia, isto te é possível não só tocar
mas restituir a quem as deu e ufanar-te
único mortal que por mérito as tocou,
por benemerência também eu as tive. 670
NEOPTÓLEMO:
Não me pesa te ver e ter tua amizade.
Quem beneficiado sabe beneficiar
seria amigo superior a todos os bens.
Podes entrar.
FILOCTETES:
Eu te conduzirei, pois
a doença almeja por tua colaboração. 675
Não é possível saber até onde vai a hipocrisia mentirosa e até onde vai a sincera verdade (ou como se confundem numa mesma ambígua atitude), quando não somos sujeito decisivos na linguagem nem decisivos no curso dos acontecimentos, mas sim somos surpresos interlocutores dos Deuses entendidos como os aspectos fundamentais do mundo e do curso dos acontecimentos.
Filoctetes tem uma crise de dor e confia o arco a Neoptólemo, prevendo que cairia no sono e pedindo a Neoptólemo que nesse lapso lhe valesse e defendesse:
FILOCTETES:
Estou perdido, filho, não mais poderei
vos ocultar o mal, attataî! Transpassa,
transpassa. Infausto, ó mísero de mim!
Estou perdido, filho! Sou devorado, filho! 745
Papaî, apappapaî, papá papá papá papaî!
Por Deuses, filho, se tens fácil uma faca
nas mãos, dá um talho na ponta do pé,
amputa o mais rápido, não poupes vida!
Vamos, ó filho! 750
NEOPTÓLEMO:
Que é essa tão súbita novidade? Por que
fazes tanto gemido e tanto pranto por ti?
FILOCTETES:
Sabes, filho?
NEOPTÓLEMO:
O quê?
FILOCTETES:
Sabes, filho?
NEOPTÓLEMO:
O quê?
Não sei.
FILOCTETES:
Como não sabes? Pappapappapaî!
NEOPTÓLEMO:
Terrível deveras é o fardo da enfermidade. 755
FILOCTETES:
Terrível e indizível. Mas apieda-te de mim!
NEOPTÓLEMO:
Que fazer então?
FILOCTETES:
Não me traias por temor,
esta doença vem de vez em quando, talvez
saciada de suas andanças.
NEOPTÓLEMO:
Iò, tu ó infausto,
mostrado infausto por todas as tuas fadigas! 760
Queres que eu te ampare e que te dê apoio?
FILOCTETES:
Não, isso não, mas toma este meu arco
tal como há pouco pediste, até amainar
este ataque do distúrbio agora presente, 765
salva e conserva-o, porque me domina
o sono assim que esta moléstia amaina.
Não é possível cessar antes, mas deves
deixar dormir tranquilo. Se nesse tempo
vierem eles, por Deuses, eu te exorto: 770
nem por ti nem à força nem por dolo
não lhes dês este arco, e não te mates
a ti mesmo nem a mim, teu suplicante!
NEOPTÓLEMO:
Confia por precaução! Não será dado
senão a ti e a mim. Traze-o com sorte! 775
FILOCTETES:
Olha, toma, filho! Venera a invídia,
que não te seja ele tormentoso como
foi a mim e ao dono anterior a mim!
NEOPTÓLEMO:
Ó Deuses, assim seja e seja fácil
e feliz nossa navegação para onde 780
Deus justifique e a missão dispõe.
O que Neoptólemo diz a Filoctetes parece crível ao próprio Neoptólemo, que assim não se inibe de dizer o que Odisseu lhe propusera dizer não como verdades a serem cumpridas mas como mentiras produtoras de persuasão.
A ambiguidade da fala de Neoptólemo ao agradecer a entrega do arco e o conselho de Filoctetes vale não só para persuadir Filoctetes de que seria resgatado para a pátria, mas antes também para persuadir Neoptólemo de que o resgataria e, portanto, não estaria mentindo nem infringindo o seu próprio código de conduta.
Entregue o arco a Neoptólemo, Filoctetes cai em sono profundo, durante o qual o coro espera leal e solícito a deliberação de Neoptólemo a respeito de que fazer: partir ou esperar. Filoctetes, ao despertar, percebe hesitação em Neoptólemo, intui algum ardil em Neoptólemo, repreende, suplica e tenta persuadir Neoptólemo – aparentemente incerto e hesitante – a devolver o arco. Neoptolemo se interroga perante o coro: “que faremos, varões?” e nesse ínterim Odisseu intervém:
ODISSEU:
Ó pior dos varões,
que fazes? Volta e entrega-me esse arco! 975
FILOCTETES:
Oímoi, quem é esse varão? Ouço Odisseu?
ODISSEU:
Odisseu sou eu, sabe-o bem, este que vês.
FILOCTETES:
Oímoi! Estou vendido, perdi! Ora, era este
quem me prendeu e me separou das armas.
ODISSEU:
Eu, sabe claro, não outro; isso reconheço. 980
FILOCTETES:
Dá, entrega-me as armas, filho!
ODISSEU:
Isso,
se queres, farei afinal, mas é necessário
que venhas conosco ou levam-te à força.
FILOCTETES:
A mim, ó pior dos maus e o mais ousado,
esses levarão à força?
ODISSEU:
Se por ti não vieres. 985
FILOCTETES:
Ó lêmnio solo e o onipotente brilho
feito de Hefesto, isso é insuportável,
se dos teus esse aí me afastar à força.
ODISSEU:
Zeus é, para que o saibas, rei da terra,
Zeus assim decidiu e estou a serviço. 990
FILOCTETES:
Ó odioso, como ainda inventas falas!
Se alegas Deuses fazes falsos Deuses.
ODISSEU:
Não, mas verazes. A viagem viajável.
FILOCTETES:
Digo não.
ODISSEU:
Digo-o. Isso é persuasivo.
Odisseu se declara a serviço dos desígnios de Zeus, quando se propõe conduzir, persuadido pela razão ou coagido pela força, Filoctetes a Troia. Filoctetes considera menos ruim morrer que se comunicar de novo com Odisseu e os Atridas.
Quando Filoctetes se revela senhor de eloquência suficiente para persuadir Neoptólemo a resgatá-lo para a pátria e enfrentar com ele a sanha dos Atridas e dos aqueus, e estão decididos e prontos para partir de volta a pátria, a teofania de Héracles ex machina os interpela, prometendo glória a Filoctetes, com a condição de ele navegar não para casa, mas para Troia, em Troia com Asclépio curar o pé enfermo, conquistar Troia e enviar o espólio que lhe cabe a seu pai e a parte do espólio devida a Héracles ao lugar de pira de Héracles em Eta, na Tessália.
HÉRACLES:
Não ainda, antes que nos ouças
as palavras, filho de Peante! 1410
Sabe que de Héracles ouves
a voz na oitiva e vês a visão.
Por tua graça venho
do celeste assento
para dizer-te os planos de Zeus 1415
e impedir-te de ir aonde vais.
Ouve agora tu minhas palavras!
Primeiro te direi a minha sorte:
após lutar e suportar tantas lutas
tive imortal valor, que podes ver. 1420
Sabe claro também te ser devido
após essas lutas ter vida gloriosa.
Indo com este varão à Troia forte
primeiro findas o lúgubre distúrbio,
e por valor eleito primeiro da tropa 1425
com o meu arco afastarás da vida
Páris, que foi a causa destes males,
pilharás Troia e enviarás o espólio
para casa, com os prêmios da tropa,
ao pai Peante no solo pátrio de Eta. 1430
O espólio que obtiveres desta tropa
comemorativo de meu arco, leva-o
à minha pira. Isto, filho de Aquiles,
te aconselho. Nem tu podes sem ele
conquistar Troia, nem ele, sem ti. 1435
Mas como dois leões companheiros,
guardai tu a ele e ele a ti. Enviarei
Asclépio a Ílion para cessar o teu
distúrbio, outra vez urge Ílion cair
por meu arco. Conservai reverência 1440
aos Deuses ao conquistardes a terra,
que Zeus pai considera tudo o mais
secundário. A reverência não morre
com mortais, vivos ou mortos vive.
FILOCTETES:
Ó emissor de voz para mim saudosa 1445
tardio surgido,
não descreio de tuas palavras.
NEOPTÓLEMO:
Também tenho esse sentimento.
HÉRACLES:
Não tardios então ides agir.
Esta ocasião vos urge 1450
e a navegação de vento em popa.
Héracles exorta à ação e à glória da conquista de Troia. Pode-se dizer que o âmbito do discurso epifânico de Héracles é o âmbito mesmo em que se encontram as personagens deste drama, no qual o valor máximo é a conquista de gloriosa vitória entendida como participação nos desígnios de Zeus.
Tanto Filoctetes quanto Neoptólemo imediatamente aceitam e aderem à palavra de Héracles, o que é o padrão em cenas de Deus ex machina. Outro traço padrão do recurso ao Deus ex machina é que, tal como nesta cena do teofania de Héracles, as personagens do drama há muito já estão implicadas e envolvidas no âmbito do Deus que os interpela.
Epígrafe para Filoctetes de Sófocles:
“Reconhecer o valor necessário do ato hipócrita”
VELOSO, Caetano. Estrangeiro. São Paulo/Rio de Janeiro: Philips, 1989.
Obras consultadas:
JEBB, R.C. – Sophocles Plays Philoctetes. EASTERLING, P.E. (ed.) BUDELMAN, Felix (introd.) Bristol Classical Pres, 2004.
SOPHOCLES – Filoctetes edited by SETH L. SCHEIN. Cambridge, 2013.
SOPHOCLIS – Fabvlae LLOYD-JONES, H. e WILSON, N. G. (ed.) O. C. T. 1990.
Jaa Torrano é professor titular do departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH-USP, onde leciona língua e literatura grega. Autor de O sentido de Zeus – O mito do mundo e o modo mítico de ser no mundo e A esfera e os dias – Poemas.
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