Por Marcelo Tápia [1]
A antiga visão trágica de mundo nos serve nestes dias? Embora cerca de dois milênios e meio nos distanciem dos tragediógrafos gregos cuja obra conhecemos (Ésquilo – 524-456 a.C., Sófocles – 496-406 a.C. e Eurípides – 480-406 a.C.), seu legado nos fornece referência insuperável acerca das ações humanas – na conceituação de Aristóteles, a tragédia é “a representação de uma ação grave, [...] com atores agindo, não narrando, a qual, inspirando pena e temor, opera a catarse própria dessas emoções” (na tradução de Jaime Bruna). Mesmo hoje, quando se multiplicam desmedidamente os meios pelos quais se podem produzir compaixão e medo, e a possibilidade de expurgação de sentimentos, o ambiente mítico da tragédia é capaz de nos falar mais profunda e substancialmente de nossas desgraças do que todo o potencial de ódio, ameaça, difamação – e, em contrapartida, de piedade – das chamadas redes sociais. Falaremos, logo, de tragédia e sua atualidade; mas, antes, vejamos uma possível ideia mais geral associada ao tema que pretendemos apresentar.
Se o mundo antigo é ruína, esta é um agente de fascinação em nossa cultura multifacetada, feita de ruínas sobrepostas que se articulam em novas concepções do novo, que será, por sua vez, nova ruína a sobrepor-se às antigas camadas de nossa história. Esse fascínio revela-se de muitos modos, e há fartos indícios dele na própria busca pelo conhecimento: do empenho para a descoberta de restos de edificações antigas à sua contemplação, da procura de fragmentos de escritos à sua obstinada análise, o interesse pelo arruinado e pelo lacunar é elemento evidente de nosso modo de agir no mundo. A esses óbvios exemplos, somam-se as recorrências exaustivas a temas, estruturas e modos de composição, assim como as reescritas sucessivas de obras literárias, cuja história se pode entender, metaforicamente, como um palimpsesto (pergaminho que se raspava para nele se escrever de novo).
O multiastuto pensador George Steiner tira proveito do fascínio pela ruína em um livrinho seu, ainda inédito em português do Brasil (que ora traduzo): o estimulante Fragments (Somewhat Charred) – Fragmentos (Um Pouco Queimados), feito do que seriam “fragmentos aforísticos” provenientes de um rolo de pergaminho chamuscado, cujo texto teria sido redigido no séc. II a.C. por um (in)certo Epicarno de Agra. Trata-se de um modo de enfeixar breves ensaios seus de temática diversa, encimados pelos fictícios aforismos, e fazê-los galgar uma dimensão mais ampla de significação. (Uma das marcas da contemporaneidade é exatamente explorar a mescla de ficção e história, como bem se sabe; são muitas as obras que disso se valem).
Mas menciono Steiner para me servir de um trecho de seus Fragmentos antes de retomar o foco deste artigo:
Por todo o planeta, crenças e mitologias coincidem em suas narrativas de uma original transgressão ou erro (hamartía) cuja catástrofe, de alguma rebelião, trouxe o mal e a ruína ao nosso mundo. [...] De que outro modo se pode explicar a interminável sequência de desastres, sofrimento imerecido, desolação pública e privada que caracterizam a circunstância humana? De que outro modo podemos racionalizar os impulsos homicidas, as crueldades, a autodestrutiva cegueira ou a absurdez que tornam as questões políticas um catálogo de fatalidades?
Sim, o catálogo de desgraças que sempre renovamos – “a boa sorte não se firma entre nós”, canta o coro na tragédia Orestes, de Eurípides – encontra correspondências essenciais no ancestral sentimento trágico do mundo; retomá-lo por meio da releitura criativa da história é, certamente, um digno meio de salvação.
Nesse sentido, nada mais contemporâneo que uma obra como Lícidas, do poeta, músico e tradutor Leonardo Antunes. Trata-se de uma peça teatral criada a partir de texto de outra natureza: um sucinto episódio das guerras pérsicas narrado pelo historiador Heródoto (séc. V a.C.) no Livro IX de suas Histórias. Como lembra Rafael Brunhara em seu Prefácio ao livro de Leonardo, para Aristóteles “não diferem o historiador e o poeta senão em que diz um as coisas que sucederam, e outro, como poderiam suceder”.
A peça é atualíssima por contar o destino trágico do conselheiro ateniense Lícidas, apedrejado devido à duvidosa acusação de traição por favorecimento aos invasores persas, e de sua mulher e filhos, também apedrejados apesar de inocentes, por um grupo em desvario de ódio, após uma rápida corrente difamatória. Nestes nossos tempos, em que se pode “linchar” virtualmente alguém em poucos minutos nas redes sociais, e nos quais o ímpeto destruidor prepondera solenemente em diversas camadas do real, uma história como essa soa mais que presente, apesar de situar-se em passado remoto.
De linhagem oriunda da mais antiga tragédia da qual temos o texto completo, Os persas, de Ésquilo – que apresenta o sofrimento dos persas por sua derrota na famosa batalha de Salamina (480 a.C.) –, Leonardo Antunes, no dizer de Francisco Marshall (no Posfácio do volume), “não apenas poetiza o que foi narrativa histórica como amplia a potência da reflexão histórica, fazendo-nos ver fenômeno reincidente e muito atual, portanto, prenhe de historicidade”. Para Marshall, “hoje temos um quadro etiológico da violência muito mais complexo, devido às condições da vida moderna”; suas causas, contudo, “parecem estar um grau adiante da causa mais profunda, que arma e dispara o quadro da maniose violenta, como o que matou a Lícidas e a sua família”.
Veja, você que me lê, se não lhe causa intensa sensação a seguinte passagem (note, ademais, a harmoniosa composição em versos decassílabos):
A multidão, conforme sabes bem, / partiu daqui em direção ao porto. / Lá, as mulheres dos atenienses / foram atrás dos filhos e da esposa / do ímpio Lícidas, o traidor. / [...] O medo nos seus olhos quando viram / a multidão se aproximando deles / foi claro indício da culpa que tinham. / [...] Choveram pedras com força divina, / justiça manifesta em violência. / A mãe se debruçava sobre os filhos, / tentando protegê-los, mas em vão. / Seu vestido tingia-se em vermelho / pelo sangue que à testa lhe escorria / e pelas carnes dos filhos, rasgadas / em sucessivos incessantes golpes. / Quando tombou sobre eles, sem vida, as crianças ainda soluçavam, / desesperadas de medo e de dor, / sem jamais se soltar da própria mãe [...]
O texto em questão associa rigor formal e fluidez semântica, construção estética e comunicabilidade oral: o metro é um elemento que não parece impor restrições ao fluxo da fala; associa-se a ele, como convém a uma representação cênica. Escrever uma tragédia à moda grega, que reescreve a história e a torna poeticamente intemporal, é oportuna façanha heroica:
ARISTEU: Mas que justiça pode haver assim? / Como os deuses seriam favoráveis / ao sacrifício de gente inocente?
HETERÓCRATES: Não sei e francamente não me importo. [...]
Leonardo Antunes cria como quem traduz, e traduz como quem cria; afinal, criação e tradução são operações análogas. Édipo Tirano, sua tradução da peça de Sófocles, é outro exemplo de intimidade com o original e eficiência de composição, na qual o ritmo dos versos do Coro é recriado em nossa língua, “almejando uma performance musical”. A musicalização – nesse caso e no de outras “recriações rítmicas” de Leonardo – é o meio para que “o português se adapte a uma prosódia que não lhe é própria da fala cotidiana [pois não há, nela, distinção entre sílabas longas e breves, como no grego], mas pode ser induzida pela melodia”. Eis, para ser entoada, uma fala do Coro sobre Édipo – o arquiconhecido herói que, sem saber, matou o próprio pai (o rei Laio), tornou-se rei (ou tirano, a opção do tradutor) por solucionar o enigma da esfinge de Tebas, desposou sua mãe Jocasta, e, após saber dos fatos, furou os próprios olhos ao encontrar morta sua mãe-esposa:
CORO: Pais de Tebas, cidadãos, olhai para este Édipo, / que sabia o enigma insigne e foi varão tão poderoso. / Quem dos cidadãos não teve inveja, ao vê-lo, o seu acaso? / Vede a que maré de horrível perdição chegou agora! / Antes que qualquer mortal contemple aquele derradeiro / dia que contemplará, ninguém o chame de feliz / sem que cruze o fim da vida não sofrendo alguma dor.
Por meio da recriação das tragédias, é possível tornar – no dizer do referencial tradutor Jaa Torrano – “acessível ao leitor o que possam ser os Deuses, os Numes e a vida heroica como referências existenciais e, sobretudo, os diversos modos trágicos de interlocução do mundo”. A reintegração (sempre renovada) à contemporaneidade, pela arte, de ruínas de antigas culturas é um meio de cruzarmos as fatalidades e enfrentarmos os horrores e perdições da vida com a suprema força da beleza.
Referências bibliográficas:
Antunes, Leonardo.Lícidas. Porto Alegre: Zouk, 2019.
Sófocles. Édipo Tirano. Tradução e comentários: Leonardo Antunes. São Paulo: Todavia, 2018.
Steiner, George. “Fragments (Somewhat Charred)”. The Kenyon Review, vol. 34, no 3, 2012.
Torrano, Jaa. “Traduzindo BAKXAI por As Bacas”. Revista Re-Produção no 5, Casa Guilherme de Almeida, 2018.
[1] Marcelo Tápia, poeta, ensaísta e tradutor, é graduado em Letras (português e Grego) e doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, onde também realizou pós-doutorado em Letras Clássicas. Tem publicado, ao longo dos anos, artigos na área de literatura e tradução. Autor de cinco livros de poemas – reunidos no volume Refusões – poesia 2017- 1982 (ed. Perspectiva) –, traduziu, entre outras obras, o romance Os passos perdidos, de Alejo Carpentier. É professor do Programa de Pós-Graduação em Letras Estrangeiras e Tradução (LETRA), da FFLCH-USP. Dirige a Rede de Museus-Casas Literários de São Paulo, formada por Casa das Rosas – Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura, Casa Guilherme de Almeida – Centro de Estudos de Tradução Literária e Casa Mário de Andrade, instituições da Secretaria de Estado da Cultura e Economia Criativa.
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