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As pequenas (e as grandes) virtudes de Natalia Ginzburg


Por Adriana Zoudine



 

As pequenas virtudes, de Natalia Ginzburg, é uma coleção de relatos intimistas e confessionais escritos e publicados em vários meios entre os anos 1944 e 1960 e posteriormente recompilados em livro em 1962. Podemos, inclusive, afirmar que se trata de uma coletânea de narrações de cunho autobiográfico nas quais a escritora enfrenta em primeira pessoa suas reminiscências, fazendo releituras filosóficas de seu próprio passado, com um tom assumidamente autoral, a partir da observação dos detalhes cotidianos: os pormenores específicos assumem dimensões sem fronteiras, as minúcias se expandem e projetam inquietudes atemporais e universais.

Mas não se trata, de forma alguma, de memórias fragmentadas: elas são trazidas à tona de maneira pensada, frontal, lúcida, contadas e digeridas com ternura poética e com uma linguagem concreta, mesmo quando alude a abstrações: os fatos e acontecimentos mais contundentes são expostos com a maior espontaneidade e transparência, e com uma clareza cortante: sapiência e percepção aguda da realidade levam Ginzburg a relatar as maiores dores e as maiores alegrias, injustiças e contrariedades, sem espalhafatos ou drama teatral, mas com a mansuetude e aceitação de quem fez escolhas de vida conscientes.

Esta notável escritora italiana, de atitude incrivelmente humilde e discreta, nasceu na cidade de Palermo, capital da Sicília, em 1916, filha de mãe católica (Lidia Tanzi, mulher culta e progressista, conectada socialmente com a intelligentsia), e pai judeu (Giuseppe Levi, um eminente cientista e professor universitário de biologia e de anatomia humana que orientou, entre outros, três alunos que vieram a receber individualmente o prêmio Nobel de Medicina). A relação familiar — envolvendo questões domésticas e intelectuais, sua origem católico-judaica, o engajamento político antifascista e comunista intrínsecos à sua família — é esplendidamente relatada e destrinchada por Ginzburg, com toda propriedade e com a mesma delicadeza e firmeza de um livro posterior, Léxico familiar, de 1963, (também da Companhia das Letras, com tradução de Homero Freitas de Andrade), outra joia da literatura italiana.

Como nos conta em As pequenas virtudes de maneira pincelada e velada em vários relatos, Natalia foi casada durante o período da segunda guerra mundial com o também escritor Leone Ginzburg, ucraniano de origem judaica nascido em Odessa, jornalista, professor italiano e ativista político antifascista.

Destaca-se o relato que abre o livro, Inverno em Abruzzo, de 1944, no qual retrata magistralmente o período do exílio de sua família. Situado no fim da Segunda Guerra Mundial, a escritora não entrega qual era esse níveo vilarejo italiano da região central de Abruzzo para o qual ela foi enviada com seu marido e filhos na qualidade de exilados do regime fascista por serem judeus e comunistas. Faz parte do processo de leitura “pescar” os sinais apenas insinuados por Ginzburg, que respeita a inteligência dos leitores e atiça nossa curiosidade. Uma águia pintada no forro da casa onde a família então mora é uma referência direta ao emblema do brasão de armas da região e sua capital Áquila ou, em italiano, l’Aquila, que justamente significa “A Águia” (aqui, teria sido oportuno manter no texto a palavra no idioma italiano e acrescentar uma bem-vinda uma nota de rodapé, de forma que o leitor tivesse meios de fazer esta associação). No papel de leitora, pesquisei e interpretei (acertadamente?) que a palavra título do livro, virtù (virtudes), também se refere a um prato da cozinha da província abruzzese de Téramo chamado Le Virtù teramane, característico do dia primeiro de maio em comemoração à primavera. Teria sido uma indicação proposital, um jogo de adivinhação intencional de Ginzburg?

Leone Ginzburg foi também editor cofundador, ao lado de Giulio Einaudi, da politicamente engajada Editora Einaudi, de Turim (posteriormente adquirida pelo grupo Mondadori e até hoje muito prestigiada). Após sua morte, Natalia veio a contribuir com a Editora Einaudi, tratando de preencher o vazio deixado pelo marido. Essa experiência editorial está também mencionada no conto O meu ofício, ensaio metalinguístico sobre o seu fazer literário, que é quase uma conversa abstraída da escritora com a “personagem” Literatura: uma demonstração do processo de escrita da autora, nos primórdios centrado na poesia, mas que mais tarde se desenrolou com naturalidade para a prosa ficcional.

Através da Einaudi, Natalia estava em contato com relevantes autores, entre outros, Italo Calvino, Carlo Levi, Cesare Pavese e Elio Vittorini. Também aqui, o jogo de mistério, que busca resguardar certa privacidade, prossegue. Nestes tempos de internet, podemos facilmente identificar, por exemplo, a quem ela delineia, porém sem nominá-lo, em Retrato de um amigo, simplesmente inserindo o trecho do poema referido, de autoria do personagem, em um website de busca. Este jogo de suspense com seus leitores foi, neste caso específico e de maneira infeliz, entregue “de bandeja” nesta versão em português através de uma nota de rodapé. Bom, uma vez identificado esse grande escritor, somos levados a pesquisar e adivinhar qual é essa cidade onde a ela e seus amigos passaram a juventude.

O segundo marido de Natalia foi Gabriele Baldini, professor de literatura inglesa, com quem, por um período, viveu em Londres. As impressões sobre o modo de vida britânico foram registradas em dois contos deste livro: a destreza da caneta de Ginzburg é captada nos ensaios Elogio e lamento da Inglaterra e A Maison Volpè, relatos de uma imigrante na Inglaterra, onde escancara com feroz ironia, mas ainda sim com afeto respeitoso, os contrastes sistemáticos desse país com sua Itália natal, evidenciando sua inaptidão de se enquadrar e aculturar-se: ela consegue externar suas sensações de estranhamento e de não pertencimento através de uma afável conjunção de sarcasmos — o que pareceria contraditório e até impossível, é por ela atingido.

Através de uma análise profunda de sua escrita, fica evidente que não temos que nos deixar ludibriar pela linguagem fluida, pela simplicidade aparente de sua literatura: Ginzburg expõe um vocabulário sofisticado e preciso, essencial e, contudo, isento de rebuscamentos artificiais e de ostentação. Ela tem um refinamento literário de quem amou, conviveu, digladiou e fez as pazes com as letras desde a infância, e essa luta corpo a corpo de toda a vida com a escrita dotou-a de grande habilidade na arte da composição literárias e do domínio absoluto sobre a palavra.

O leitor atento e perspicaz notará de imediato que a singeleza de sua escrita, na verdade, revela uma técnica apurada e sistemática: o timbre da voz da autora, com a repetição literal de palavras, de expressões curtas e até de diálogos em um mesmo conto são propositais e conferem uma pulsação sistemática ao texto ao reiterar ideias e resgatar fatos da memória arrefecida pela passagem do tempo. Resulta uma escritura cadenciada, construída com ruídos arrítmicos, descompassados, intermitentes, que terminam por permanecer repercutindo no tempo e no espaço, no peito aberto da autora e na mente do leitor.

É justamente nessas reiterações premeditadas e essenciais de determinadas expressões em cada um dos contos, imediatamente perceptíveis no original italiano, onde está a marca estilística da escrita de Ginzburg. E é precisamente neste sentido que a tradução ao português — a qual, é de se destacar, apresenta muitos méritos como, por exemplo, o de produzir um texto que flui bem em nosso idioma — exibe uma sua falha evidente: a repetição formal de termos nem sempre foi respeitada, o que acarreta uma perda significativa para o leitor de língua portuguesa. Embora a tradução assuma, possivelmente por decisões editoriais, um tom gramatical demasiado informal em relação ao registro do texto original e típico do próprio caráter italiano, ela oferece ao leitor brasileiro um vocabulário acurado: a linguagem elegante da metade do século 20, na qual se percebe nitidamente a erudição da autora e sua escolha precisa de vocabulário, é bem trabalhada e resolvida na tradução em questão.

Nathalia Ginzburg nos abandonou em 1991, deixando, para nosso deleite, um legado literário de alta qualidade.


Natalia Ginzburg: As pequenas virtudes. Trad. Maurício Santana Dias. São Paulo: Companhia das Letras, 2019; 128 p.


Adriana Zoudine é formada em Engenharia de Produção pela Escola Politécnica da USP e em Educação Artística pelas FMU-FIAM-FAAM. Cursou o Programa Formativo para Tradutores Literários e o Programa de Aprimoramento em Tradução Literária da Casa Guilherme de Almeida. Atualmente se dedica à tradução literária, com foco em italiano e inglês. Livros traduzidos: Ai piedi del David (2012), de Rossella Scatamburlo; Racconti Sardi (1894), de Grazia Deledda, Le avventure di Pinocchio (1883), de Carlo Collodi; In Prima Persona Singolare (2007), de Cristiana Pivari; Anne of Green Gables (1908), de Lucy Maud Montgomery.

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