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OCULTAR E DESVELAR - O JOGO LÚDICO DA DIALÉTICA NO LIVRO ENCANTAMENTO, DE GUILHERME DE ALMEIDA


Charles Gentil 
[1]



1. Dialética e jogo lúdico: a palavra sete e o número sete – uma brincadeira de ocultar e desvelar

No livro Encantamento (1925), de Guilherme de Almeida, pode-se entrever, hipoteticamente, uma preocupação do autor na adoção da palavra “sete” e do número “7” como presenças constantes em sua criação. Para nos aproximarmos desse tema e, portanto, da revelação e do ocultamento que o cercam, torna-se conveniente observar, preliminarmente, alguns fragmentos de poemas que se situam em posição anterior à aparição da palavra sete no referido livro:

 

Fragmento de “No velho parque”:

E a lua, no ar
da noite diáfana, perpassa
cheia de céu, cheia de luz, cheia de graça


Fragmento de “Pantomima”
:

É a noite que, lenta e agreste,
devagar,
leva um dedo de cipreste
aos lábios de luar...


Fragmento de “Carnavalada”
:

Noite de ópio e de papoulas
Sob o céu de lentejoulas,
gira e gira,
cirandando, a sarabanda...
A noite é um cravo de Holanda
que suspira.


Fragmento de “Missa Negra”
:

A noite é gótica: é uma igreja.
Dom Pôr-de-Sol, o sacristão
tuberculoso, que gagueja
numa hemoptise uma oração,
vai acendendo aos poucos, pelas
naves escuras, as estrelas.

 

Nota-se, em tais fragmentos, que se sucedem, respectivamente: 1. a noite diáfana; 2. a presença dos lábios brancos de luar; 3. a sarabanda sob um céu de lantejoulas e 4. as estrelas (que, por último, surgem). Com isso, penso ser cabível supor que diferentes formas de luminosidade (diáfana, lábios de luar e céu de lantejoulas) teriam, gradativamente, precedido a aparição da palavra “estrelas” que, enfim, em Missa Negra, é o aspecto que o claro assume.

Observe-se agora o seguinte fragmento do poema “Abracadabra”:

 

pelos céus lavados
e grisalhos,
sete estrelas vesgas
piscam dentre as nesgas
dos galhos

 

Como se pode notar, a claridade manifesta em “Missa Negra” reaparece nesse poema que lhe é posterior no livro, mas, desta vez, associando-se a luz à palavra “sete” (em sua primeira aparição); em consequência disso, tal palavra – ao que parece – se revela como que emanando um brilho estelar. Assim sendo, pergunta-se: seria produto do acaso, ou fruto da intencionalidade do poeta que, em “Abracadabra”, a palavra “sete” se desvele associando-se à ideia da luminosidade estelar? Isto é: haveria, por parte de Guilherme de Almeida, a elaboração consciente de um desdobramento evolutivo da claridade – a partir de formas anteriores que se transformam – para inserir, afinal, a palavra “sete” vinculada ao brilho e à luz, como palavra “iluminada”?

Considerando-se que todos os poemas desse bloco se referem à noite e se encontram agrupados sob o título de “O Reino Encantado”, pode-se entender que se realize, aos poucos, uma explicitação de que o escuro necessariamente se atrela a alguma forma de claridade. Nesse sentido, não parece ser fortuito que, de acordo com o pensamento do autor, que considero dialético, a escuridão não reine absoluta, mas que, ao contrário, claro e escuro não só se complementem, mas se fundam, de modo a conferir, possivelmente, encanto a tal reino, uma vez que seus elementos opostos prevaleceriam em estado de equilíbrio, ou seja, em harmonia. Porém, embora – a meu ver – a dialética revele, no livro Encantamento, a concórdia entre os opostos, pode-se lançar (à luz de leituras atentas de toda a obra de Guilherme) a suspeita de que algo ainda se oculte... Mas o que se esconderia? Ou o que mais se desvelaria?

A fim de se retirar, aos poucos, o véu sobre essa questão, considere-se o verso central do fragmento já citado:

pelos céus lavados
e grisalhos,
sete estrelas vesgas
piscam dentre as nesgas
dos galhos

 

Pode-se notar que, ao mesmo tempo que a palavra “sete”, iluminada, se revela, dá-se o seu ocultamento. Ela se ocultaria, aqui, justamente na palavra “estrelas”, que a desvela. Nesse sentido, se a palavra “sete” já poderia se ocultar, por exemplo, no poema “Missa Negra” – “[...] vai acendendo aos poucos, pelas / naves escuras, as estrelas”, em “Abracadabra” ela se revelaria, para, em seguida, nela mesma voltar a se ocultar – “sete estrelas vesgas”...

Com efeito, no “Reino Encantado” tudo parece sugerir que um lento e mais profundo desvelar esteja em curso; um lento desvelar que, em primeiro lugar, se manifesta no entendimento de que claro e escuro, luz e trevas, revelação e ocultamento, estariam indissociavelmente ligados.

Isso é o que parece também sugerir o poema posterior a “Abracadabra”, cujo título é “Sete”. Supõe-se, aliás, haver nele um novo prolongamento da tessitura poética, pois, se em “Abracadabra” a palavra “sete” revelou-se pela primeira vez e esteve restrita a apenas um verso, nesse poema a palavra iluminada desdobra-se, em primeiro lugar, como título, e em segundo lugar, ao se revelar – a partir daí – repetidas vezes.

Observe-se que em “Sete” – assim como nos demais poemas – o assunto do poema se passa à noite: “e a lua hebraica dança nos céus / a dança doente dos sete véus”.

Ao longo do poema dá-se a reiteração da palavra “sete” em um ambiente noturno; nesse sentido, é possível inferir que, com isso, crie-se a sugestão de que, por ser iluminada, a palavra “sete” clareie, em seu desvelar, a noite. No entanto, se aqui há um desvelar, haveria também algo que ainda permaneceria oculto. O que seria?

Na sequência da obra, tem-se o poema “Com a lua”, noturno como os que o antecederam; nota-se, no entanto, que ele é constituído de 28 versos (número múltiplo de 7), distribuídos em sete estrofes de quatro versos...

No referido poema, também, a lua será tudo para o eu lírico: Salomé dos sete véus; gôndola, alfanje, hóstia, tulipa, anzol; cabeça de Yokanaan ou Pierrot de Willette. A lua poderia, portanto, assumir sete formas diferentes...

Não é só. Algo que também poderá, talvez, demonstrar a relevância desse número no livro Encantamento é que, em “Com a lua”, o astro aparece associado ao conceito de totalidade que, por sua vez, identifica-se com um número específico: se o todo – para o poeta – refere-se a uma imagem circular, isto é, ao disco lunar, e este remete ao número 7, este seria, por consequência, o número que abrange tudo...

Na poesia de Guilherme de Almeida, a totalidade do mundo não se encontra estática, mas em estado de perpétuo movimento, de modo que o mundo assume uma feição heraclitiana; porém, considerando-se a lua como referência, cujas fases adquirem faces diferentes, observa-se que as mudanças são lentas, embora cíclicas, e, em seu eterno retorno, podem proporcionar a impressão de que nada se altera, razão pela qual o mundo também possuiria um rosto parmenidiano.

Logo, atrás de cada máscara se oculta outra, ainda mais profunda; nesse sentido, é possível o entendimento de que, na poética de Guilherme, a totalidade do mundo manifesta-se por este apresentar, ao mesmo tempo, aspectos relacionados a mudança e fixidez; ou, para dizer de outra maneira, apresenta a circularidade, que consiste em atar princípio e fim (o ciclo/círculo que se fecha) de modo a expressar a noção de totalidade, que, no poema “Com a lua”, se evidencia por meio da revelação do número 7, que até então se escondia.

Em “Salomé dos sete véus”, a palavra “sete” e o número “7” (a organização estrófica e a quantidade de versos) encontram-se simultaneamente revelados; palavra e número juntos, enfim, desvelam-se no “Reino Encantado”. Porém, há de se perguntar: por que o número 7 não se desvelou no poema cujo título é, aliás, a palavra “sete”, para assim, a ela, então, atar-se?

Talvez fosse previsível demais, ou redundante, palavra e número imbricarem-se num poema cujo título solicitaria, de imediato, a presença de um número que lhe correspondesse. Nesse sentido, ocultar o número 7 quando se esperaria que ele aparecesse consistiria numa refinada “brincadeira” por parte do poeta que, assim como uma criança “madura”, se divertiria com aquele leitor que tivesse sua expectativa adiada. De todo modo, neste reino encantado, a magia lúdica da poesia se instala por meio da interação do texto com seus leitores, sugerindo-lhes, possivelmente, que participem do “jogo”. O leitor que, tendo percebido o cogitado recurso lúdico, consentisse em brincar, deparar-se-ia, no poema “Com a lua”, de forma imprevista, com a revelação do número 7, associada ao desvelar da palavra “sete”.

Porém, se o autor de Encantamento não tece, conscientemente, um fio de continuidade de um poema a outro, de modo a unificar todo o livro, em função da confluência que revela ao mesmo tempo o número “7” e a palavra “sete”, então deve-se admitir que a junção de um duplo desvelar é simples produto do acaso?

Coincidência ou não, o fato é que o movimento lúdico da dialética não cessa, de modo que a palavra “sete”, que se ocultou nos poemas “Jazz-Band” e “Cubismo”, revela-se novamente no poema “Bailado Russo”, assumindo, nesse momento, a forma de sete listras de cores não previsíveis. Isto significa dizer que, para o eu lírico, o lúdico – que faz parte antes de tudo, do mundo infantil, por sempre poder comportar algo de imprevisto – possibilitaria ao leitor manter-se em estado de contínuo encantamento, mesmo com coisas simples (aparentemente banais), como, por exemplo, jogar no solo um pião – isto porque o pião pode despertar fascínio, em razão de seu giro ininterrupto, sobretudo quando oculta seu movimento, quando aparenta – justamente por causa dele – estar paralisado, da mesma maneira como parece que “fica todo cinzento”, quando, na verdade, esconde suas sete cores, reveladas, no entanto, apenas quando cessa o movimento, conforme este fragmento:

Mas gira. Até que, aos poucos,
Em torvelins tão loucos
Assim,
Já tonto, bamboleia
E, bambo, cambaleia...
Enfim,
Corre mole e desdobra
Então,
Em parábolas lentas,
Sete cores violentas,
No chão.

 

No poema “Tênis”, o “jogo” continua: a palavra “sete” é, agora, novamente velada. Observe-se o seguinte fragmento:

Um novelo
O gato bate na bola:
E a bola, branca de neve,
Pula e rola,
Fofa e leve...

 

A brincadeira, agora, consiste em mostrar a polissemia do sintagma “branca de neve”, pois este, além de referir-se ao novelo de cor branca, poderá remeter ao conto de fadas “Branca de Neve”; em relação a este, a palavra “sete” seria uma evocação esperada da memória, que vinculará a personagem aos sete anões. Consequentemente, o suposto jogo lúdico não se torna monótono, uma vez que poderá ocultar e/ou revelar uma palavra (“Missa Negra”, “Abracadabra”) ou revelar uma palavra e frustrar uma expectativa numérica (“Sete”), ou o jogo poderá revelar, juntos, um número e uma palavra (“Com a lua”), ou esconder ambos (“Jazz-Band” e “Cubismo”), ou então, poderá ocultar um movimento e desvelar a palavra (“Bailado Russo”); sempre poderá haver, portanto, no jogo dialético, uma surpresa ao leitor que se dispôs a participar dele.

Observa-se ainda que, em “Tênis”, tanto a palavra “sete” quanto o número “7” estão ocultos, embora esteja implícito que algo quer se revelar. No caso, contudo, do poema posterior, denominado “Cinema”, observa-se que é, à semelhança do poema “Com a lua”, constituído por 7 estrofes, cada uma contendo 4 versos, ou seja, somam-se justamente 28 versos, número esse múltiplo de 7. Mas, contrariamente ao que ocorre em “Com a lua”, em que a palavra “sete” também se revela ao ser mencionada (“Salomé dos sete véus”), a mesma palavra encontra-se oculta no seguinte fragmento de “Cinema”:

E uma gente esquisita,
Em torno deles, como de dois sóis,
É um sistema de estrelas que gravita:
– são bandidos e heróis

 

Dessa maneira, se no poema “Abracadabra” a palavra “estrelas” primeiro iluminou e depois ocultou a palavra “sete” revelada, em “Cinema”, esta apenas se esconde. Com isso, no referido poema, se, por um lado, mostra-se o número 7, por outro, a palavra “sete” é velada, o que garante a diversão do “jogo dialético”.

Aliás, seria acaso que apenas alguns poemas mais adiante, isto é, em “Branca de Neve”, não só ocorra o inverso – enquanto o número 7 é ocultado, a palavra sete aparece – mas, também, esta apareça associada aos anões do conto de fadas e, portanto, ao universo infantil (à semelhança de “Bailado Russo”, em que a palavra sete relaciona-se às listras do pião)? Nesse poema, além disso, após mencionar Branca de Neve como seu primeiro amor (note que a luminosidade é enfim, transfigurada na presença alva da figura feminina amada), o eu lírico diz “sinto-me agora mais criança ainda”, ao referir-se, penso, não só ao amor de infância pela personagem do conto de fadas, mas também à projeção desta no mundo real, o que, aliás, o fez procurá-la na vida... O “jogo dialético”, de certa forma, o converte mesmo em criança, a ponto de se explicitar, no penúltimo verso, “E esta velhice é uma segunda infância”. Sendo assim, os “fios do novelo da vida...” parecem atar, dialeticamente, infância e velhice, da mesma forma que ligam claro e escuro: neste caso, a velhice, ao ser nova infância, revela que os extremos da vida, de fato, não se opõem, e, sim, há um fio de continuidade entre ambas, que se expressa pela passagem gradativa de uma fase à outra e pela permanência do antigo (infância) no novo (velhice) que aflora.

É útil observar, ainda, que no último terceto do soneto XXIX de Nós (1914-1917) tem-se:

Doidos! Nunca pensamos, um segundo,
que, assim opostos, dando a volta ao mundo,
tornaremos ao ponto de partida!

 

O relacionamento amoroso em Nós, portanto, ilustra (da mesma maneira como se dá no poema “Com a lua”, de Encantamento) a noção de que a circularidade remete a um ciclo/círculo que se fecha, atando princípio e fim – em ambos os casos, a totalidade compreenderia o retorno ao ponto de partida, tal qual em “Branca de Neve”, uma vez que a velhice é entendida como uma segunda infância.

No livro Encantamento, “Branca de Neve” é o último poema do ciclo “Alma”; o ciclo seguinte é denominado “Sete Poemas”. Deve-se observar que, se o último poema da série anterior ocultou o número “7”, e o título do novo e último ciclo o revela, em “Frutidor”, terceiro poema desse novo agrupamento, ocorre o inverso: nele, o eu lírico define: a. sua glória, b. seus versos, c. sua vida, d. seu sonho, e. sua tristeza, f. seu trabalho e, por fim, g. seus pensamentos. São, assim, 7 definições que o eu lírico atribui a si – embora se esconda a palavra “sete”, o número “7” é revelado...

Já no poema seguinte, “Velocidade”, tanto a palavra “sete” quanto o número “7” são revelados: assim como em “Com a lua” e “Cinema”, há agora, uma nova convergência da palavra e do número.

A palavra “sete” é desvelada em “Não se lembram do Gigante das Botas de Sete Léguas?”, relacionando-se portanto, nesse poema, à distância, à unidade e à cadência de uma velocidade que – como se verá – lentamente diminui.

Deve-se notar, aliás, que o poema “Velocidade” é disposto visualmente de modo que as palavras fragmentadas se encontrem agrupadas em pares, e o alinhamento das distâncias entre elas permita traçar, em cada sequência, uma linha imaginária e, com isso, visualizar linhas paralelas sobre as palavras. Sendo assim, observam-se três pares de paralelas, o que aliás, permanece oculto (sob as palavras) até verificar-se, mais ao final do poema, o paralelismo das palavras, o que possibilita, então, estender esse conceito geométrico ao poema como um todo. Talvez, para o poeta, a matemática e a palavra não apenas se complementem – há outras referências, em seus poemas, a linhas paralelas (como, por exemplo, em Simplicidade (“em longas filas paralelas”) ou em Nós (“no sossego das ruas paralelas”), mas se fundam, o que resultaria em magia no livro Encantamento.

Há ainda, no poema “Velocidade”, algo que se revela: no verso “Não se lembram do Gigante das Botas de Sete Léguas?”, a palavra “sete”, assim como em “Bailado Russo”, inicialmente associa-se à velocidade – neste, relacionada ao giro do pião; naquele, ao longo percurso de Sete Léguas – que é superada. Pode-se entrever, assim, um fio de continuidade entre os dois poemas: em ambos, aos poucos, o ritmo diminui, mas, enquanto em “Bailado Russo” o movimento veloz se converte em estagnação completa, no poema “Velocidade”, ele não chega a findar, ocorrendo uma lenta desaceleração com

espicha-as bem para trás:
E as cores retesas dançam, sobem, descem (...)


O que, aliás, interfere na velocidade (por exemplo, de leitura do poema), e dá continuidade à diminuição do ritmo, que se expressa pelo recurso visual da palavra “DE-VA-GAR”; por fim, a desaceleração continua de forma amena, quando se faz uso das palavras “paralelamente” (que é duplicada) e “horizontais”, bem como com o verso final, “Sobre a cabeça espantada do Pequeno Polegar...”, que também se contrapõe às palavras fragmentadas; com isso, o “contrapeso” feito não executa uma ruptura, mas revela um procedimento poético que, a meu ver, prima pela harmonização dos ritmos e, assim, instaura de forma amena um ritmo novo, cujo desenvolvimento lento e prolongado é reforçado pela presença das reticências (que permitem, também, vislumbrar que a morosidade continua...).

Dessa maneira, se no livro Encantamento revela-se que as coisas possuem, em geral, um ritmo cadenciado (de modo que a lentidão permita, sem sobressaltos, a passagem de um estado a outro), talvez também com isso se sugira que o desvelar de todo segredo dá-se de forma gradual. É como se o encanto de uma revelação não estivesse no fato de ela ocorrer de maneira imediata, mas a graça consistisse em que a descoberta se desse aos poucos; como uma criança que, na ponta dos pés, com cautela e em silêncio, se aproximasse do buraco de uma fechadura, para espiar o que se passa do outro lado e, com isso, conhecê-lo.


2. Dialética e Silêncio: A palavra encantada e o número do encanto

O poema “A minha Salomé”, imediatamente posterior à “Velocidade”, último poema do ciclo “Sete Poemas” e também último do livro Encantamento, realiza-se na forma de diálogo entre o rei e a lua. Nele, o pobre rei de um reino pobre tenta persuadir a lua a dançar para ele, chegando a oferecer-lhe metade de seu reino; reino, aliás, que se chama “O Outro Lado do Som”. No entanto, a lua esquiva-se aos pedidos, exigindo, para atendê-los, que o rei lhe oferte o bem – que segundo ela – seria o mais precioso: seu silêncio.

Observa-se que a lua veste-se 7 vezes (de rendas, de flores, de folhas, de águas, de nuvens, de névoas e de ar) e, com isso, refere-se aos 4 elementos: o fogo é representado pela sensualidade das rendas; a terra, água e o ar, respectivamente por flores/folhas, águas e nuvens/névoas e ar). A cada nova roupagem, a lua pergunta ao rei para confirmar se está linda, bem como ordena-lhe que a defina:

Estou linda, não é? (7 vezes)
Dize o que é que eu pareço! (7 vezes)

 

Por sua vez, a lua exige:

Dá-me... num copo de ouro... o teu silêncio.
Dá-me o teu silêncio!
Quero o teu silêncio.
Tu prometeste. O teu silêncio.
Eu tenho o teu silêncio!
Eu tenho o teu silêncio!
Eu tenho o teu silêncio!

 

Assim como a pergunta “Estou linda, não é?”, a interpelação “Dize o que é que eu pareço!” repete-se 7 vezes; a expressão “o teu silêncio”, no final de cada frase em que a lua se dirige ao rei, também é 7 vezes pronunciada, e isto ocorre em sua 7ª aparição (vestida de ar). Considerando-se, aliás, o poema “Com a lua”, seria acaso que é a segunda vez em que a lua se revela associada ao número 7?

Assim, parece estar sugerido no livro Encantamento que, enquanto nos poemas anteriores a palavra “sete” e o número 7 eram ocultos e desvelados, juntos ou separadamente, uma lenta revelação desde o início estava em curso; o que era revelado escondia algo, e o que era oculto velava um novo segredo. Sendo assim, em “A minha Salomé” ocorre algo como o fechamento do ciclo revelador, de modo que princípio e fim, claro e escuro, infância e velhice, aos poucos se imbricam de tal modo que as palavras tornam-se encantadas quando relacionadas ao número de vezes com que são repetidas, isto é, 7.

A convergência entre palavra e número é, lentamente, desvelada desde o início do livro, até que em seu último poema a palavra revele-se encantada. O percurso que principia e termina com a revelação de que a palavra é mágica se daria:

1) Pelo desvelar e velar da palavra “sete”. Essa palavra ora se esconde totalmente, isto é, não se mostra nos poemas ou está oculta (como, por exemplo, na palavra “estrelas”) ou é desvelada e, neste caso, encontra-se associada ao número “7”, que por sua vez está velado. Notem-se, a título de exemplo: “sete estrelas vesgas”; “a dança doente dos sete véus”; “sete listas de cores imprevistas”; “os sete anões”; “Gigante das Botas de Sete Léguas”.

2) Pelo velar e desvelar do número “7”. Esse número, em geral, se oculta e, quando se desvela, aparece na forma de organização estrófica (7) e na quantidade do número de versos, múltipla de 7, em convergência com a palavra sete, como acontece nos poemas “Com a lua”, “Cinema” e “Velocidade”.

3) Por fim, pela fusão da palavra “sete” ao número “7”, no poema “A minha Salomé”, em completa convergência, de modo que se revelaria a mágica quando determinada palavra ou expressão é pronunciada exatamente 7 vezes. Palavra e número formariam um elo e se revelariam, enfim, no último poema do livro Encantamento, enquanto unidade indissolúvel.


Dialética e Circularidade: O ciclo que se fecha

Considerando-se a organização do livro Encantamento, observa-se que o primeiro ciclo de poemas (O Reino Encantado) e o último ciclo (Sete Poemas) possui, cada um, sete poemas. Ou seja, o livro inicia-se e termina com sete poemas.

Tudo parece indicar que, Guilherme de Almeida, diverte-se com aquele leitor que não percebe o aspecto cíclico que encerra o livro Encantamento, apesar das reiteradas revelações e ocultamentos que fez; o espírito lúdico não se cansa e continua brincando, mesmo apesar da proximidade do fim do jogo.

Observe-se que, no “Reino Encantado”, ou seja, no ciclo inicial que contém sete poemas, a palavra Sete, que nomeia um dos poemas dessa série, irá reaparecer para nomear, agora, o próprio ciclo final, ou seja, “Sete Poemas”, que, por sua vez, contém a mesma quantidade de poemas do começo. Com isso, afigura-se que princípio e fim ligam-se pela noção de circularidade, não apenas em razão da quantidade de poemas, mas também pelo fato de a palavra sete, que aparece no princípio, reaparecer no fim do livro Encantamento, possivelmente sugerindo que um ciclo se fecha.

ALMEIDA, Guilherme de. Encantamento. São Paulo: Livraria Globo e Irmãos Marrano Editores, 1925.



REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Guilherme de. Encantamento. São Paulo: Livraria Globo; Irmãos Marrano, 1925.

____________________.Nós. São Paulo: Oficinas de O Estado de S. Paulo, 1917.

____________________.Simplicidade. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1929.

____________________.Toda Poesia I-VI. São Paulo: Martins, 1952.

ANAXIMANDRO; PARMÊMINES; HERÁCLITO. Os pensadores originários. Trad. Emmanuel Carneiro Leão e Sérgio Wrublewski. Petrópolis: Vozes, 1991.

FOULQUIÉ, Paul. A dialética. São Paulo: Europa-América, 1974.

GENTIL, Charles. A dialética pacificadora enquanto modernidade em Guilherme de Almeida. Revista Re-produção, São Paulo, n.1, 2014. Disponível em: http://www.casaguilhermedealmeida.org.br/revista-reproducao/ver-noticia.php?id=49.

MENEZES, Djacir (Org. e Trad.) Textos Dialéticos. Rio de Janeiro: Zahar, 1969.

VALLE, José Gabriel dos Reis. Dialética: de Heráclito a Marx. Belo Horizonte: Fumarc, 1980.




[1] Integrante do Grupo de Estudos sobre a obra de Guilherme de Almeida, que se reúne na Casa Guilherme de Almeida, desde 2011.

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